*Atenção: o arquivo deve ter no máximo 500kb.
*Nome que será exibido na barra de endereços. Não deve conter espaços ou acentos. Ex.: www.agoracriticateatral.com.br/criticas/nome-da-critica.Caso não seja preenchido, será gerado automaticamente com base no título.
Esse texto faz parte do Projeto Arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado
Entre todas as artes da cena, a dança consegue explorar de maneira muito singular muitas das potências da presença do corpo em relação ao espaço e ao tempo, para além da linearidade da dramaturgia convencional. No entanto, por muito tempo a base de construção dos espetáculos de dança ocidentais se ancorou na dramaturgia teatral, buscando um mote para contar histórias através da dança, principalmente com o balé clássico, assim como ocorreu com a música, em especial a ópera. Para quebrar com essa tendência, o modernismo trouxe a proposta de não atender o desejo do público de ouvir uma história e começou a apresentar a dança pela própria dança.
Um século depois, na contemporaneidade, a dança já se libertou dessas amarras e pode ser tão independente que até da própria dança se despe para buscar algo anterior e primordial a ela: o próprio corpo. Por este viés – o da nossa própria carne, porosa e escorregadia de conceitos quando em encontro com a sua natureza mais selvagem – Bitch é muito instigante. O espetáculo performático solo da OUTRO Dances, coletivo de dança contemporânea de Pelotas que visa instaurar uma conexão com múltiplos artistas e grupos, percorre o caminho diretamente inverso ao tradicional: partiu de uma relação antropofágica de uma artista-criadora usando sua corporeidade animalesca como matéria-prima para chegar até o espectador e assim mexer com nossas percepções, nos incomodar e por vezes desacomodar.
Bitch é o primeiro espetáculo da chamada trilogia-antropofágico, dirigida pela artista da dança e professora da Universidade Federal de Pelotas, Alexandra Dias, PhD em dança pela University of Roehampton, de Londres. O solo foi uma criação de Alexandra produzida como trabalho prático de seus estudos realizados na Inglaterra, onde a diretora estudou durante 4 anos o conceito de antropofagia aplicada no corpo, e a partir disso concebeu a ideia de um corpo esburacado, que se conecta e se abre por meio da exploração de seus buracos físicos. Foi assim que, ao aprofundar a investigação da relação entre a boca e o ânus, propondo uma prática antropofágica que se conecta com a estratégia queer de inversão e ressignificação, surgiu a figura da mulher-cadela e assim o propósito de ressignificar o termo bitch (que literalmente remete à fêmea do cão em inglês, mas também é amplamente utilizado como equivalente à palavra “puta” em português).
Quando Alexandra voltou ao Brasil, buscou propor formas alternativas de compartilhamento da sua pesquisa acadêmica, desviando da tradicional escrita de livros ou artigos. E dessa forma, criou mais dois espetáculos explorando a mesma pesquisa antropofágica: Cães, que explora corpos de homens (trans, cis e queer), e Animal Noturno, o último espetáculo da trilogia, o qual aborda o corpo selvagem na clausura (uma resposta ao período do isolamento da covid-19). O processo de trasmissão o solo Bitch para a colega artista e professora Maria Falkembach, também formada pelo DAD na UFRGS e docente da UFPel, fez parte desta proposta de Alexandra de compartilhar a própria pesquisa, e acabou por se fazer uma forma de desafiar o solo enquanto formato, mostrando que um solo não é necessariamente só.
A tarefa de “antropofagizar” a própria autora e solista se deu pela transmissão dos chamados scores do trabalho – as orientações de movimento que habitam cada cena, e que fazem do espetáculo não uma construção feita a partir de uma psicologia ou de afetos, mas sim uma constante pesquisa – abandonado a dramaturgia à moda antiga e flertando intensamente com a performance. BITCH enquanto grunhe busca reposicionar a palavra “puta” (cadela em inglês), termo que visa atingir mulheres de forma depreciativa, por meio de uma uma performance que valoriza celebra a potência de transição entre o corpo-mulher e o corpo-animal.
A montagem à brasileira, a primeira parceria entre as duas atrizes, bailarinas e pesquisadoras, manteve forte a marca da corporeidade selvagem, e ainda mergulhou em outro campo político, buscando refletir sobre as concepções de mulher em nosso país ao explorar este corpo transespecífico – que oscila entre mulher e cadela. Para falar sobre a brasilidade, um novo segundo ato foi criado para a peça: em cena, este corpo feminino que se coloca no entre – o estado entre o ser humano e o bicho – regurgita a figura uma porta-bandeira e nossa bandeira nacional — questionando qual a bandeira as mulheres carregam na contemporaneidade. De fato, trata-se de um símbolo do Brasil aviltado nos últimos anos, assim o corpo da mulher o é há tantos anos.
Este solo demonstra a marca da poética singular de pesquisa de movimento de Alexandra Dias, que explora em seus bailarinos um corpo cheio de espaços ávidos por relações, e constitui, mais que um espetáculo, algo que pode ser lido como um ritual de dança, permitindo ao público criar um outro nível de relação com a bailarina performer e com o próprio apetite voraz de narrativas. Não há fácil entendimento para a plateia, pois o que se apresenta diante dela é um corpo que fica mais permeável e cria um estado corporal de porosidade ao estabelecer uma conexão interna tão intensa (entre os buracos do corpo – como o boca-cu, que recebeu até uma composição musical feita por Leandro Maia e Maria) que leva a uma externa (com o público), no ato de exposição deste corpo aberto a quem assiste.
Bitch nos causa estranhamento por uma guturalidade inicial que nos angustia, ao ver um corpo feminino totalmente animalizado explorando as sonoridades de seu palato mole enquanto encara o público. Essa “fome” corporal voraz de devorar o entorno faz com que uma sexualidade que transita entre o bizarro e o cômico brote naturalmente, enquanto a artista deita e rola sobre um pedaço de papelão, vestida com uma pele que remete aos pelos caninos. E a quebra do tom e da linearidade ocorre justamente quando a cadela – ou puta – deixa seu corpo animalesco e toma a forma de uma porta-bandeira, fazendo um movimento de reapropriação da bandeira do Brasil, e do próprio Funk, que hoje virou produto de exportação. Trata-se sem dúvida de um espetáculo contemporâneo, trazendo o corpo em estado de performance a serviço da dança, o qual acaba por nos morder o ânimo e propor uma elaboração do trauma de anos de violência estatal contra as mulheres, especialmente durante o governo Bolsonaro. Somos cadelas, para o bem e para o mal. Que busquemos nessa nossa mais profunda animalidade as forças para resistir e não sermos devoradas.
**insira todas as tags, separadas por vírgula (,)
Selecione os Festivais em que essa peça foi exibida. Utilize a tecla Ctrl para selecionar mais de uma opção.
Direção: Alexandra Dias
Intérprete-criadora: Maria Falkembach
Trilha sonora pesquisada: Alexandra Dias e Maria Falkembach
Samba-enredo: Leandro Maia e Maria Falkembach
Música Badêbauêra: Adriana Deffenti e Nico Nicolaiewsky
Figurino e cenário: Alexandra Dias
Bandeira: Maria Falkembach
Costureira: Heloisa Helena Sanches Batista
Desenho de luz: Alexandra Dias
Produção de palco/Montagem de som e luz: Bruna Oliveira e Denilsson Cosseres
Realização: OUTRO Dances e Tatá Núcleo de Dança-Teatro