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O certo seria começar este texto falando sobre a intensa produção poética e crítica de Marco Vasques, mas, acredito que ele concordaria comigo, começo falando sobre peixes, vinhos e jantares. Sim, além de poeta, editor, crítico teatral, gestor e dramaturgo, Marco era um anfitrião afetuoso e, para sorte de seus convidados, um excelente cozinheiro. Preparava com esmero os peixes que ele mesmo pescava, deliciava seus amigos com erudição e sabores variados.
O interessante desses jantares era que sempre se convertiam em saraus literários, rodas de debates e embates críticos que nem sempre terminavam amigavelmente. Digo isso porque o Marco era do tipo de amigo que não fazia a menor questão de concordar com o que quer que fosse, não importava o quão próximo fosse seu interlocutor. Comigo, colega de crítica e doutorado, nunca foi diferente. Até, pra ser bem sincero, acho que a gente concordava em bem poucas coisas e claro, não raras vezes, discutíamos acaloradamente sobre as montagens que assistíamos. Era comum, em filas de teatro, para espanto e escândalo das pessoas próximas, defendermos com unhas, dentes e vozes exaltadas os espetáculos que amávamos. Nos jantares, regados de vinhos, cachaça e deliciosos peixes assados, as discussões eram um pouco mais amenas, embora dificilmente alguém cedesse um único milímetro em suas perspectivas críticas.
Fato é, e nisso concordávamos, que para poder continuar a discutir e manter sempre preparadas as garras, assistíamos tudo o que podíamos. E quando digo tudo, era tudo mesmo. Em Florianópolis, por anos, acompanhamos com afinco a produção do teatro local. Marco sempre dizia que um dos maiores problemas da classe artística era não prestigiar a produção dos colegas: como seria possível mensurar a qualidade da produção local sem que no público dos espetáculos outros grupos não estivessem presentes para estabelecer o diálogo?
O Marco, junto com o poeta Rubens da Cunha, estabeleceu uma continuidade e um volume bastante grande de análises sobre os espetáculos brasileiros que passavam por Santa Catarina. Juntos fundaram o Caixa de Ponto- Jornal Brasileiro de Teatro, uma das poucas publicações independentes impressas sobre teatro a circular nacionalmente na última década. Tudo feito na coragem, na amizade e, no osso do peito, como já o ouvi dizer. E claro, de maneira bastante presente para os artistas do teatro catarinense, o modo de escrita e as observações mordazes foram muitas vezes estopins de polêmicas memoráveis, confrontos e embates acirrados.
Muitos vão lembrar, e isso já faz quase vinte anos, do grande mistério de Sarah Kane, pseudônimo de uma crítica teatral que publicava textos para lá de ácidos no extinto jornal Diário Catarinense. Marco jurava de pés juntos que não era ele, mas a identidade da crítica nunca foi revelada, deixando pairar dúvidas e desconfianças em seus leitores. A polêmica e a contundência de suas opiniões era também sua marca (um ponto coincidente com Sara Kane?), de seu modo de ser, de dialogar e viver. O Marco não era fácil, mas nem a vida e nem o teatro são.
Engraçado falar dele no passado. Essa dúvida que paira, essa procura paralisada que parece sempre cessar a esperança e aumentar a expectativa nos deixa, a mim, seus amigos, colegas, parentes e leitores apreensivos com seu desaparecimento, com uma sensação de incompletude, de final aberto, com possibilidades fantasiosas. Tão lindo seria, daqui uns vinte anos, passeando pelo litoral, encontrá-lo em uma vila de pescadores e na maior naturalidade ele dizer que largou tudo para se dedicar somente à pesca e a uma vida mais simples, mais ligada à natureza e com menos discussões com amigos na porta do teatro. E que tinha um baú com dezenas de novos livros de poemas. Seria um desfecho irônico e poético, bem ao seu estilo de terminar seus contos.
Do Marco, além de suas numerosas críticas de teatro, ensaios e entrevistas, li os livros de contos Harmonias do Inferno (Letras Contemporâneas, 2010) e Verde, Amarelo, Azul e Branco (Edição do Autor 2021). Criador prolífico, ele foi autor de várias outras obras, como Elegias Urbanas (Ben-te-Vi, 2005), Flauta sem boca (Letras Contemporâneas, 2010), Anatomia de Pedras e Tsunamis (Redoma 2014) Carnaval de Cinzas (Rizoma, 2015), entre outras. No final de dezembro de 2023 a Editora Rizoma planejava fazer o lançamento de seu livro mais recente, Pássaro sem Matriz.
Quero destacar ainda seu papel como editor do jornal Ô Catarina!, um dos mais antigos e relevantes suplementos culturais de Santa Catarina, editado pela Fundação Catarinense Cultura (FCC). Sob sua direção o suplemento retomou a constância de publicações e abriu espaço para vozes das mais diversas linguagens artísticas. Após a saída do Marco da FCC, as edições escassearam e hoje, salvo engano, a publicação está abandonada. Acho que essa era uma das facetas do Marco, não apenas de editor competente, mas de agregador. Tanto no Ô Catarina! quanto no Caixa de Ponto a diversidade de opiniões, artistas de renome internacional e destaques periféricos dividiam espaços representativos e leitores que agora, angustiados com o silêncio abrupto de sua partida ao mar, ficam mais uma vez repletos de expectativas. Polêmico, ríspido, contraditório, corajoso, amável, honesto e fiel, essa mistura de características fizeram do Marco Vasques uma figura singular no panorama catarinense das artes. Reclamava que não era convidado para eventos literários, mas seus leitores estavam sempre dispostos a participar de suas edições colaborativas e publicações independentes. Crítico mordaz, pesquisador das artes cênicas e filósofo (filosofia foi sua primeira formação), Marco mantinha um diálogo ativo com artistas de todas as linguagens, divulgava as novidades da cena catarinense em seu programa, no portal Desacato. A mobilização em busca de seu paradeiro mostrou o quanto era querido por seus pares, amigos e colegas. Sua ausência certamente mostrará o quanto era indispensável como artista, crítico e difusor da produção teatral de Santa Catarina.
Adoraria, caso desfechos fantasiosos ainda pudessem ser considerados, que ele voltasse de sua imaginária vila de pescadores e criticasse este texto como inexato e incompleto, parcial e dado a emotividades sem sentido e piegas (certeza que ele utilizaria esses termos), e eu, juntamente com todos os amigos e familiares angustiados em sua procura, concordaria com tudo, não rebateria e nem argumentaria nada, e ficaria apenas feliz em tomar uma das cachachinhas que ele mantinha reservadas e, pela primeira vez não colocar nada em discussão, a não ser a alegria de seu retorno e suas aventuras marítimas. Ele, certamente acharia que eu estaria aprontando algo.
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