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Esse texto faz parte do Projeto Arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado
As artes circenses são uma prática cultural milenar multifacetada e polivalente, que usa e abusa de muitas linguagens para produzir momentos de assombro, riso ou deleite ao público. Por conta deste polimorfismo estético, os espetáculos circenses, sejam eles tradicionais ou não, costumam reunir artistas de perfis e habilidades muito diversos. Por isso, obras coletivas de circo são geralmente estruturadas com base na junção de números individuais ou em dupla com características muito distintas entre si, os quais podem ser retirados ou acrescidos do espetáculo conforme a composição do grupo no momento da apresentação. No entanto, mesmo com uma atuação mais individualizada dos artistas, é fundamental ressaltar o paradoxal espírito coletivo e de apoio mútuo que vem da raiz das trupes mambembes desde muitos séculos e que segue até a atuação circense de hoje.
Dentro deste prisma, encontro Dalí não apenas como um espetáculo icônico do movimento chamado circo contemporâneo em nosso Estado, mas também como um detentor desta tradição circense universal e ancestral. De fato, vemos, por um lado, por meio da estética escolhida em referência a um grande pintor da modernidade e ao movimento surrealista, o ar do chamado Nuveau Cirque. Este movimento, nascido na França nas últimas décadas do século passado, explora dentro da linguagem circense uma dramaturgia da cena que busca ultrapassar a sobreposição de números sem maiores costuras dramatúrgicas e constituir diálogos e hibridismos com linguagens artísticas mais distantes do circo conhecido como tradicional, além do fato de se mudar do picadeiro e das praças para dentro das salas de teatro. Em paralelo, escavando a base deste espetáculo, o que encontramos é a raiz ancestral do circo: aquele vínculo tão forte que faz dos artistas circenses uma grande família, sempre disposta a se ajudar quando for necessário.
Por isso, vale a pena não deixar se apagar a história que está por trás deste grupo de renomados artistas gaúchos que se uniram em prol de uma causa, pois é parte intrínseca da própria criação artística enquanto circo. É fato que muitas das artes circenses jogam com o insólito usando o corpo humano e o expondo ao risco para inebriar sua plateia, mas isso certas vezes pode cobrar um preço alto. Foi o que aconteceu com Eduardo Souza, acrobata que, após um acidente de trabalho, ficou paraplégico. Depois de uma longa internação, Eduardo saiu do hospital com o sonho de poder retornar ao palco e voltar a andar – o que demandava um alto investimento em tratamento. Esse sonho levou sua amiga Heloisa Nequete, produtora e acrobata de espetáculos circenses em Ibiza durante 8 anos, a mobilizar toda uma rede de colegas com a finalidade de angariar fundos para a causa de Dudu.
Diante da necessidade de levantar um valor alto, os artistas reunidos resolveram oferecer o seu bem mais precioso em prol da nobre causa: sua arte, e para isso receberam um incentivo fundamental de Jessé Oliveira, então diretor da Casa de Cultura Mário Quintana, que os estimulou a montarem um espetáculo beneficente e lhes ofereceu uma sala de teatro para se apresentarem. A ideia ganhou corpo, o coletivo cresceu e recebeu a visita da emblemática figura de Luciano Mallmann, célebre artista autor e ator de Ícaro (vencedor do Prêmio Açorianos de Dramaturgia em 2017), que também se tornou cadeirante após uma queda no tecido acrobático. Mallmann se encantou com o projeto e foi convidado a estrear como diretor junto a Helô.
Graças a este movimento, aos 21 anos, Eduardo Souza reencontrou os palcos e os antigos colegas de Parkour nessa produção. A primeira apresentação de Dalí reuniu 15 artistas ao total e foi realizada em abril de 2018 no Teatro Bruno Kiefer da Casa de Cultura Mario Quintana, tendo a renda revertida para o tratamento do artista. O sucesso da estreia levou o espetáculo logo em seguida para uma segunda data, desta vez na sala mais tradicional da cidade, o Theatro São Pedro, por meio do convite de seu então diretor Dilmar Messias. E foi assim que, sem nenhum financiamento ou patrocínio, nasceu para o palco o espetáculo Dalí.
Desde então, a obra já conseguiu se desdobrar em audiovisual durante a pandemia, garantindo desta vez a sobrevivência dos demais artistas do grupo por meio de editais de fomento à cultura. Nasceu, através do edital diversidades da cultura da Fundação Marcopolo, o pequeno documentário "Dalí – fragmentos do todo" e o filme "Dalí – vídeo espetáculo", assinado por Heloísa Nequete e a cineasta Tatiana Nequete, com produção de Helô e Guilherme Gonçalves. Assim, em 2021, Dalí foi uma das estrelas do prêmio Açorianos de Circo. Além de vencer como o melhor espetáculo, teve ainda 4 indicações de melhor performer: Dominique Martins (artista que já participou de diversos espetáculos na Croácia, Portugal, Bulgária, Argentina e Paraguai) por seu número de contorcionismo, Zeca Padilha (de OVO, do Cirque du Soleil) como acrobata, Roberta Alfaya (acrobata especializada em técnicas circenses na Ucrânia) por sua performance na lira e nos bambolês e Guilherme Gonçalves (grande artista da acrobacia aérea gaúcha) por seu número de tecido acrobático, sendo que dois foram premiados: Zeca e Roberta.
Para seguir em cena até hoje, o espetáculo passou por várias mudanças, enxugou o elenco, a direção e adaptou algumas cenas, mas mantém a inspiração no universo de um dos maiores ícones da arte surrealista em todo o mundo, cujas obras estampam não apenas o fundo do palco por meio de belíssimas projeções montadas por Diego Steffani, mas vêm à vida também na figura clássica do elefante de patas alongadas, que se materializa nas quatro pernas de pau de Luciano Fernandes. Percebe-se ainda a estrutura ao estilo varieté, porém com uma dramaturgia mais descompromissada, que atua de forma sutil e silenciosa, porém eficaz para a costura das cenas, ao longo das quais surgem personagens que marcaram a trajetória do pintor e escultor, entre elas a esposa e musa inspiradora Gala Éluard, interpretada por Joana Cambeses, e o poeta Federico García Lorca (interpretado por Guilherme Gonçalves).
Assim, nos deleitamos com números clássicos circenses de boa qualidade – contorção, equilibrismo em monociclo, perna de pau e parada de mão, tecido acrobático, roda cyr, malabares, funambulismo e o mais jovem parkour temperado com retoques de comicidade – que servem de suporte para retratar livremente a vida e a obra do mestre do surrealismo no século 20. O conjunto da obra se destaca pela visualidade marcante das projeções e da composição imagética das cenas por meio de junto do cenário, dos figurinos e dos atos circenses, o que torna o espetáculo deliciosamente fotogênico. A referência ao artista aparece na sua personagem representada na figura do pintor excêntrico, bem incorporado por Filipe Farinha, que chega a brincar e lutar com as próprias criações em cenas que ora flertam com um drama ora com um clownesco tímidos. O surrealismo também se materializa algumas vezes nas personagens, como o caso de uma figura humana que vira uma mesa para a musa e o pintor tomarem seu chá.
Em termos de qualidade técnica, um destaque para o solo de roda cyr de Zeca Padilha, bem como para a composição precisa e harmônica entre música, dança e acrobacia no número de tecido de Guilherme Gonçalves. São marcantes para o espetáculo ainda a leveza e agilidade de Alfredo Bermudez e Eduardo Muskopf – que foi aluno de Dudu Souza – ao atravessar as cenas literalmente voando sobre o palco, além da singular e despojada intimidade de Eduardo Corrêa com seus malabares e o apoteótico número final de Dominique Martins, que leva a plateia junto consigo em seu desafio de contorcionismo. De fato, assistindo a Dalí chegamos à conclusão de que o corpo circense e suas habilidades é surrealista por natureza.
De qualquer forma, durante o Festival Porto Alegre em Cena, sob um olhar atento de uma plateia que abrangia de crianças a idosos, vi Dalí encantar o público mesmo quando aconteceram as falhas, os pequenos erros e imprecisões. Isso nos mostra que o deleite estético do circo tem muito a dialogar com o encontro entre o real e o sonho, que compõem o surrealismo do pintor espanhol. E também a tradição circense segue mesmo neste espetáculo contemporâneo. Afinal, o circo se constrói a partir desta grande família feita por laços não só de sangue, mas de amizade e cooperação em prol da construção deste que é e sempre será o maior espetáculo da Terra, criado para celebrar a arte da superação dos nossos próprios limites a cada dia.
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Direção artística: Heloisa Nequete
Elenco: Alfredo Bermúdez, Dominique Martins, Eduardo Corrêa, Eduardo Muskopf, Filipe Farinha, Guilherme Gonçalves, Joana Cambeses, Luciano Fernandes e Zeca Padilha
Técnico de segurança em altura: Guilherme Gonçalves
Operador de som: Mauro Pogorelsky
Operador de iluminação: Alexandre Saraiva
Criador e Operador de projeção de vídeo: Diego Steffani
Produção cultural: Dominique Martins e Guilherme Gonçalves