*Atenção: o arquivo deve ter no máximo 500kb.
*Nome que será exibido na barra de endereços. Não deve conter espaços ou acentos. Ex.: www.agoracriticateatral.com.br/posts/nome-do-post.Caso não seja preenchido, será gerado automaticamente com base no título.
Esse texto faz parte do Projeto Arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado
Hesitei bastante em escrever sobre O Homem Perdido neste espaço, que é destinado a abordar exclusivamente livros de dramaturgia, pois o autor, também dramaturgo, diretor e ator, André Francisco, classifica sua obra como poesia. Entretanto, do mesmo modo que nos acostumamos a ler Shakespeare em alexandrinos e a encontrar Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, nas prateleiras de poesia, me arrisco a pensar na potência dramática dos versos de André Francisco como possivelmente destinados à cena.
Talvez, após mais de vinte anos de teatro, o autor buscasse experimentar novas nuances ou ter experiências literárias diferentes dos seus numerosos textos e adaptações teatrais, entre elas, Sinhá Chica, O Velório da Tia Aurora, Ori, Cinco Movimentos como se Fosse Poesia, Barro, O Marinheiro e A galinha degolada. Acontece que a voz que ecoa da solidão construída de sua personagem, enclausurada em um apartamento de onde vê o caos urbano de uma humanidade cada vez menos passível de humanidades, parece eclodir não como lirismo restrito às páginas impressas, mas com o volume e o ritmo de falas destinadas a um público que o vê e o ouve.
Não há uma narrativa linear, ou a intenção de narrar propriamente dita, mas é inegável a unidade na construção das cenas, a constituição de um conjunto coeso de imagens sensíveis, grotescas, belas e revoltantes que se conectam umas com as outras por meio de recortes que formam uma paisagem humana repleta de drama. É, como num solilóquio poético, um homem que, ao falar para si mesmo, é ouvido pelo mundo.
Constituído por sete capítulos – A cidade; Manhã; Ainda manhã; Tarde; Em primeiro lugar, cansaço; Noite e Desatenção –, o texto se configura como uma espécie de crônica poética de um dia no cotidiano de uma grande cidade. Embora não se estabeleça como continuidade de um fato em particular, a voz que permeia esse dia quase comum com suas observações contundentes permanece a mesma em todos os capítulos, com seu estupor e desalento.
É como se houvesse um narrador onisciente, capaz de perceber e avaliar detalhes mínimos, julgar seus vizinhos e concidadãos com absoluta parcialidade, sem, contudo, se abster de sarcasmo e de um humor cruel e sensível ao mesmo tempo. E é precisamente sob a voz deste narrador, deste cronista de um mundo perigosos e implacável, que os poemas parecem ceder espaço para a personagem, para o embate de ideias contido numa espécie de monólogo construído em versos.
Não há identificação de uma personagem ou antagonista, perspectivas para o futuro ou um passado a ser descoberto. Não há uma identidade, uma família ou relações parentais e afetivas que denotem um conflito. Não há um nome. O que há é uma personalidade em ponto de ebulição, que queima ao toque, mas aquece a casa. A força descritiva das cenas narradas por essa voz onisciente, as sutis ironias, o sarcasmo descarado e o desvelamento de pequenas crueldades que apontam a selvageria de uma humanidade envolta em carnificinas dão profundidade e vigor a essa personagem inominada, constituída de versos e revolta.
Um monólogo? Sim, para quem pensa a literatura cenicamente. Um conto, uma novela? Talvez, para quem usa como referência narrativas calcadas no solilóquio, como em Companhia, de Samuel Becket. Poesia? Sem dúvida, como nos atesta o autor. Mas a pergunta que fica, numa época em que textos de teatro são escritos em verso e se espraiam na página com recursos tipográficos e líricos provenientes da poesia, é: o que caracteriza hoje, após o pós-dramático e as performatividades textuais, um texto de teatro?
Apenas o fato de usar versificação, branca ou rimada, metrificada ou livre, não configura um poema ou um texto teatral. O uso de versos em textos teatrais contemporâneos é bastante usual, bem como elementos tipográficos como letras de tamanho diversificado ou que se desenham na página. Textos como Memórias Impressas, de Claudia Shapira, ou mesmo a obra dramatúrgica do recente e precocemente falecido dramaturgo e diretor Max Reinert são um exemplo dessas perspectivas. Mesmo a exacerbação de uma linguagem metafórica não distingue propriamente o gênero, visto que metáforas são constantes tanto na poesia quanto na dramaturgia.
O ritmo, os jogos de sentido, as alterações sintáticas e a vocalidade são características inerentes à dramaturgia, mas podem também estar presentes na poesia. Ou seja, cada vez mais difícil dividir os gêneros em categorias estanques. Por isso, quando leio versos como “Mas talvez o que me excitasse mesmo fosse sentir tanta raiva que eu subisse dois lances de escadas e matasse o desgraçado com as minhas mãos, de preferência sentindo o calor do seu sangue esguichando em minha cara”, eu, leitor de poesia e profissional de teatro, imagino uma luz e uma sonoplastia para esse trecho de poema.
De qualquer modo, achei válido, para este espaço, forçar os limites entre uma coisa e outra, entre poesia e dramaturgia, entre possíveis monólogos e arrebatamentos poéticos. André Francisco é um homem de teatro, mas também é poeta. Cabe a nós, partindo do pressuposto de que o texto lido é de quem lê, decidir se há mais poesia em seu texto teatral, ou se seus poemas vão além das palavras, rumo à encarnação de um ator.
O Homem Perdido, de André Francisco
Editora Rizoma, 118 páginas, 2021.
R$ 35,00
**insira todas as tags, separadas por vírgula (,)