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Esse texto faz parte do Projeto Arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado
Na esquina democrática, centro histórico de Porto Alegre, ouve-se, ao longe, uma cantoria que é acompanhada por diferentes instrumentos de percussão. Aos poucos, o som e as vozes aproximam-se e o público presente visualiza o acontecimento cênico que se inicia em um horário de trânsito intenso: trata-se da peça Maria, seus filhos e suas filhas, da Cambada de Teatro em Ação Direta Levanta Favela, grupo oriundo da capital gaúcha. Espetáculo integrante do Festival Porto Alegre em Cena 2022, Maria, seus filhos e suas filhas leva para as ruas uma proposta de teatro político, combativo, que tece uma dramaturgia direta, sem rodeios, por meio de uma reflexão crítica da realidade social na qual estamos atrelados. Esta é, inclusive, uma máxima recorrente no trabalho do grupo, que, desde sua fundação, em 17 de abril de 2008 - data simbólica que marca o massacre de Eldorado dos Carajás, onde 19 trabalhadores sem terra foram assassinados pela polícia do Estado do Pará - tem como premissa de pesquisa e criação artística um teatro de caráter popular, pautado na coletividade e autonomia de seus participantes.
Maria, seus filhos e suas filhas, não obstante, dialoga com este princípio, ao trazer para a cena a história de famílias - sobretudo o contexto familiar de mães e filhas/filhos - soterradas pela desigualdade social e pelo engendramento cruel do mundo capitalista, que subalterniza determinados grupos e nega a determinados sujeitos os seus direitos civis e humanos mais elementares. Segundo o grupo, a ideia do espetáculo surgiu do desejo das atrizes em falar sobre a trajetória pessoal de suas mães nas entranhas de um mundo machista e neoliberal, mostrando que, apesar das dificuldades evidentes de raça, gênero e classe, essas mulheres conseguiram criar artistas pesquisadoras e professoras militantes, que, inclusive, formaram-se no ensino superior em um país que, historicamente, dificultou as políticas de acesso a este espaço.
Esse é um dos primeiros pontos que chamam a atenção na composição dramatúrgica do trabalho. Há, durante toda a história apresentada, um forte apelo brechtiano para a denúncia social, desvelando as mazelas de nossa sociedade por meio das personagens e das situações apresentadas, especialmente, porque o texto foi construído através das narrativas orais das mães do próprio elenco. É, portanto, a força da narrativa real destas mulheres que ressoa o tempo inteiro e traz verdade ao que assistimos, revelando uma estrutura política segregadora por meio de vivências específicas. Todavia, a peça não se fecha nisso. Ainda que diversas problemáticas sociais sejam tangenciadas e referenciadas no trabalho, também há um retrato potente, subversivo, que desmantela esse lugar ao mostrar a possibilidade da transgressão em um mundo desigualmente estruturado; é como se todas e todos do grupo gritassem aos quatro ventos, nas ruas onde se apresentam: apesar de vocês, estamos aqui. Somos artistas. Resistimos. Criamos. Fazemos Teatro.
Como em outros trabalhos do grupo, tais como O Beijo no Asfalto (2014), A Mulher Crucificada (2016) e Malone Morre (2018), percebe-se em Maria, seus filhos e suas filhas a presença da experimentação cênica a partir de obras dramáticas já existentes, de autores já consagrados, porém sempre em relação direta com os anseios, as histórias de vida e a vertente política da Cambada em Ação Direta. Em três eixos distintos que, no entanto, retroalimentam-se em cada uma das produções desenvolvidas, o Levanta Favela trabalha com espetáculos criados especialmente para a rua, com o teatro de vivência e com as experimentações no espaço urbano. A prática do teatro popular está presente em todos estes eixos e tece as relações entre artista e obra, corroborando as escolhas discursivas, estéticas e narrativas do grupo.
Ressoando o teatro épico de Bertold Brecht e com forte inspiração nos pressupostos teóricos de Augusto Boal, Maria, seus filhos e suas filhas é baseado no texto “Maria e seus cinco filhos”, de João Siqueira, que tem a desigualdade social como pano de fundo. Segundo mencionado pelo grupo, Sandro Marques - ator e membro fundador do Levanta Favela - sugeriu a montagem do texto como forma de refletir sobre as mazelas que assolam os trabalhadores e trabalhadoras, especialmente os do campo, que sofrem com o êxodo rural compulsório por conta da busca de melhores condições de trabalho nas cidades. No entanto, como a peça mostra, ao chegarem no espaço urbano, esses sujeitos sofrem com a marginalização impulsionada pelo sistema capitalista. Na esteira destas questões, a dramaturgia do espetáculo abre margem para que se fale sobre assuntos diversificados, tais como o peso imposto por esta estrutura a mães trabalhadoras (sobretudo as solteiras), a luta pela terra e por moradia digna, o racismo, o classismo, a importância do feminismo como mote de libertação, entre outros pontos que ora são literalmente mencionados, ora encontram-se atrelados ao que é executado enquanto ação ao longo da peça.
A ação dramática, a propósito, é bastante frequente em cada quadro apresentado, uma vez que a dramaturgia é assim dividida, por quadros que vão gerenciando o que se conta. Visualizamos histórias familiares de opressão e luta que vão se delineando de forma linear, porém, sempre em momentos distintos onde percebemos a perspectiva de cada personagem. Por se tratar de um espetáculo de rua, a linguagem e o modo de atuação do elenco torna-se espetacular e há uma visceralidade latente tanto na forma quanto no conteúdo. O tom de denúncia, neste contexto, se reafirma para além do texto em si, estando no corpo, na voz e na musicalização e coreografias onipresentes no trabalho dos atores e das atrizes, que se faz em cumplicidade com o público que o assiste. Existe, neste sentido, uma proposta estilizada no aspecto estético e no trabalho corporal do elenco que dá conta de angariar o político e o teatral no ambiente da rua. Os atores e atrizes cantam, tocam instrumentos e dançam como um recurso potencializador do discurso.
É significativo perceber, acerca disso, a relação de extrema intimidade e companheirismo por parte do elenco, ao longo de todo o espetáculo, para que isso aconteça. Todos e todas estão em cena o tempo inteiro, ainda que não estejam em foco no que tange a história. E, a todo instante, percebe-se a energia pungente trocada entre ator/atriz e com os espectadores à sua volta, na sua relação com o eu e com o outro. É como se esse caráter íntimo do jogo cênico postulado pelo elenco na rua fosse necessário para se discutir o que o trabalho exige. Há, por conta disso, uma verdade e uma entrega por parte de todos que, politicamente, coloca o grupo entre os mais relevantes de Porto Alegre por conta das discussões que trava e para onde as leva. Trata-se de um coletivo necessário, que produz coisas necessárias.
Cabe ressaltar, ainda, a acessibilidade e a responsabilidade social que Maria, suas filhas e seus filhos traz consigo. Apresentado em diferentes lugares da capital gaúcha, gratuitamente, estamos falando de um trabalho que se faz pelo, para e com o povo. Não existem limitações de público e é também das pessoas que o assistem que a força dele reside, uma vez que os transeuntes podem se ver representados nas situações delineadas. Em cena, estão muitas mães, filhas e filhos que, comumente, não possuem as suas histórias contadas nem mesmo no campo da arte. Não por acaso, a Cambada de Teatro em Ação Direta Levanta Favela nos mostra que, ainda que o peso da desigualdade em nosso país seja implacável, o questionamento e a reflexão crítica por meio do fazer artístico é um modo de se olhar para ele de frente, sem medo de denunciar, enfrentar e transformar a realidade.
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Direção, Produção, Execução, Trilha sonora, elementos e figurinos: criação coletiva da Cambada de Teatro em Ação Direta Levanta Favela
Elenco:
Andrea Sparremberger - Martha
Danielle Rosa - Dalva
Merlin Morlos - Andreia
Pâmela Bratz - Maria
Ricardo Padilha - Pedro
Sandro Marques - Alfredo
Thomaz Rosa - Banda