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A primeira afirmação que podemos fazer acerca do enérgico 90 ceias, dirigido por Vitória Titton, é que trata-se de um espetáculo diferente de tudo o que já vimos em diversos aspectos. E esta afirmação - para além de minha apreensão pessoal sobre a obra em si mesma - foi ratificada na conversa que tive com várias pessoas após assistir ao trabalho, no Teatro de Arena de Porto Alegre, em sua curta temporada, em março de 2023. Não raro, todos e todas aquelas com quem conversei pós-apresentação - fossem artistas, fosse o público geral presente - mencionaram a observação análoga de perceber em 90 ceias um efeito cascata, um tour de force criativo que desemboca em uma teatralidade múltipla, imbuída de vetores aliciantes de relação com o público que operam por diferentes lógicas: vetores estes carregados por inúmeras possibilidades, no âmago de uma criação que é amalgamada através de uma potência cênica que se vale do riso e da emoção como força propulsora de toda ação.
Todavia, independentemente de uma possível unanimidade em torno desta percepção, de fato, 90 ceias é um trabalho único e diferente de tudo o que assisti até então em Porto Alegre. E, o aspecto curioso dessa afirmação - afinal, tudo o que presenciamos no agora sempre difere do que já assistimos anteriormente - reside no fato de que não se trata de uma peça calcada na experimentação própria aos “modismos” contemporâneos que buscam o “novo”, o “original” e a “distinção”, ou mesmo a “participação compulsória" na esfera daquilo que é ratificado coletivamente como “novidade” no âmbito artístico; mas, antes, falamos de um trabalho que cria, experimenta e inova, sem, contudo, preocupar-se em estar arbitrariamente alinhado com qualquer categorização previamente definida. E, é nesta experimentação livre e calcada no desejo de brincar e experimentar cenicamente o que flui deste limiar lúdico entre suportes distintos que reside a força do espetáculo.
Esta questão está posta, sobretudo, quando percebemos de imediato o caráter improvisacional que o trabalho carrega - um caráter improvisacional que mescla-se, contudo, com um forte apelo dramático. Isso porque, ainda que não estejamos falando do improviso “puro”, realizado no aqui e no agora do jogo cênico - visto que há toda uma construção dramatúrgica que tece e orienta a trajetória das personagens da peça no tempo e no espaço - identificamos, na relação direta e por vezes indireta que é interposta entre elenco e público, brechas, rasgos narrativos e respiros na dramaturgia e no trabalho preciso dos atores e das atrizes que criam uma interessante panorâmica de inter-relação, onde o caráter fabular da história aglutina-se com a possibilidade do encontro com o outro, sendo este outro o próprio espectador.
Há, portanto, um rigor artístico e um profundo estado de pesquisa e investigação no cerne do trabalho que se pauta neste entre, neste alinhamento artístico entre diferentes camadas que se organizam retroalimentando-se e produzindo sentidos intercambiados a cada cena. Isso, aliás, é o que faz com que 90 ceias torne-se uma experiência tão particular: pois, se estamos presenciando uma história, uma narrativa dramática propriamente dita, com início, meio e fim - e sim, estamos: a história de 90 ceias de Natal de um mesmo núcleo familiar, com todas as interfaces de suas diferentes temporalidades, todas as suas dores e alegrias - também estamos presenciando um experimento cênico aberto no contato com o outro, e que é assumido como tal em praticamente todos os momentos, sem mascarar para o público o que se vê sob o espectro de uma representação que existe, mas que não é granítica e não ignora a possibilidade de uma desconstrução premente. Não há cartesianismo dramatúrgico, por conseguinte: 90 ceias mistura conteúdo representacional, improviso, uso do espectador como agente cênico direto, provocação simultânea de texto, luz e som, etc. de modo extremamente bem amarrado em uma dramaturgia que conta, mas que também se constrói no desdobrar do acontecimento.
À vista disso, a direção de Vitória Titton é precisa e revela a face de uma diretora pesquisadora que investe no engendramento dessa complexidade, por mais simples que o espetáculo possa parecer em um primeiro momento. Este é, a propósito, um dos detalhes que saltam aos olhos, de imediato: a convivência entre o aparentemente simples presente na abordagem das temáticas da narrativa dramática - ceias de Natal, brigas e reconciliações familiares, solidão, moral, sexualidade, separação, envelhecimento, luto, etc. - com a estrutura hermética da encenação, que vai delineando o espaço e diluindo a dramaturgia aos poucos, revelando seus códigos e seus efeitos diegéticos. Cada escolha da direção de Titton, inclusive, nos faz caminhar pelos meandros da história narrada como se fôssemos parte daquela família, e isso se dá por meio de um conjunto bem escolhido e bem articulado de códigos, uma vez que a profundidade da linguagem encenadora estabelece o vínculo necessário entre texto, imagem e os significantes entremeados entre ambas as coisas.
Não obstante, o excelente elenco, composto por Bruna Casali, Eriam Schoenardie, Lauro Fagundes, Marina Fervenza e Maurício Schneider, consegue dar sustentação às proposições desta encenação, transitando por diferentes personagens ao mesmo tempo em que revelam a face do próprio ator/atriz que as compõem, em meio ao improviso não escamoteado. Há um riso que transborda em cada cena, uma personificação imagética que transcende a caracterização de cada figura, como se cada situação familiar dialogasse com um pedaço de nossas próprias vidas por meio dos tipos apresentados. Isso acontece pela criteriosa pesquisa que arquiteta cada uma das personagens - cabe ressaltar que cada ator/atriz faz mais de uma persona, com exceção de Maurício Schneider, que mantém a sua governanta do início ao fim - e leva para a cena reflexões que transitam no bojo de cada uma das histórias contadas.
Neste ponto, nota-se em cena que o processo criativo da dramaturgia - inspirada no texto The Long Christmas Dinner de Thorton Wilder e estruturada a partir de diferentes colaboradores nos laboratórios de criação do grupo - insere este tom intimista e de abertura interpretativa à estrutura fabular proposta, sem negligenciar a história que está sendo contada. Assim, ainda que o texto final tenha sido assinado por Carina Corá - sempre envolta em projetos dramatúrgicos instigantes - nota-se concretamente a mão do elenco nos pormenores de tudo aquilo a que assistimos, instituindo vida própria a cada ação delineada, a cada palavra dita. Não por acaso, uma das características mais marcantes do trabalho é justamente a extrema naturalidade com a qual unem-se texto e ator/atriz, artista e público.
No que tange a sonoplastia e a iluminação, não há como deixar de citar o trabalho de trilha pesquisada do grupo, que é pontual e preciso. Menciono este fato porque, quando trata-se de uma trilha original, comumente temos uma linha sonora edificada a partir dos critérios narrativos que se estabelecem ao longo dos ensaios, onde cria-se atmosfera, densidade e produção de sentido por meio das relações elencadas entre a estética, a linguagem, a dramaturgia e a sonoridade. E tudo isso se vê no desenrolar sonoro de 90 ceias, ainda que a trilha não seja original. A iluminação de Thais Andrade, por sua vez, corrobora dois fatos que merecem destaque: o primeiro é a qualificação da dramaturgia e da encenação de 90 ceias por meio pontualidade emotiva que a luz cria; e o segundo é a ratificação do nome de Thais Andrade como uma das melhores iluminadoras em atividade na capital gaúcha: seus trabalhos sempre são munidos de critério, seriedade e sensibilidade.
Por fim, ressalto uma qualidade tácita de 90 ceias, que se mostra durante todo o espetáculo, embora não esteja propriamente dita nele: a nítida presença do amor e do júbilo de todos os envolvidos em torno do projeto, em uma simbiose criativa que transcende o que assistimos. Surgido no Departamento de Arte Dramática, como estágio de direção de Vitória Titon, e vencedor do Prêmio Açorianos de Espetáculo Revelação em 2018, 90 ceias ressoa para além da Academia e cria um vínculo efetivo com diferentes tipos de espectadores. É um imenso prazer assistir 90 ceias e presenciar um trabalho tão bem executado tecnicamente; mas é especialmente prazeroso ver artistas divertindo-se e nos divertindo sem deixar de levar extremamente a sério o seu ofício. E isso faz toda a diferença.
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Direção: Vitória Titton
Elenco: Bruna Casali, Eriam Schoenardie, Lauro Fagundes, Marina Fervenza e Maurício Schneider
Dramaturgia: O grupo, a partir do texto The Long Christmas Dinner de Thorton Wilder e das interferências dos colaboradores dos Laboratórios de Criação.
Dramaturgia final: Carina Corá
Colaboração artística: Ana Cecília Reckziegel e Marta Isaacsson
Criação de Luz: Thais Andrade
Figurinos: Augusto Schnorr
Cenografia: Maurício Schneider
Produção: Giulia Baptista
Trilha sonora pesquisada: o grupo
Edição de trilha sonora: Vinicius Zurawski
Fotos: Adriana Marchiori e Qex Bittencourt
Operação de Luz: Thais Andrade
Operação de Som: Vitória Titton