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Não há como falar na peça Passageiros da Alegria, presente na programação do Festival de Teatro de Gravataí, sem falar da própria história desta companhia do interior do RS que ruma para três décadas de atuação ininterrupta. Foi numa daquelas idas e vindas da vida, por um ato de encantamento que o rumo da Cia Retalhos de Teatro despontou: o encontro do seu fundador, diretor, ator e músico Helquer Paez com a linguagem do clown em 1995, durante um espetáculo que passava por Santa Maria, sua cidade. Esse momento de passagem trouxe para o jovem estudante de teatro da UFSM um norte para sua companhia, que nasceu no ventre universitário, regado a pesquisa em fontes eternizadas como Chaplin, além do Gordo e o Magro. Assim surgiu a companhia e o espetáculo de formatura de Helquer: Goiabada com Queijo, uma versão clownesca de Romeu e Julieta, que impulsionou a Retalhos, nome dado em alusão ao modo caseiro com que foram compostos os primeiros figurinos.
A estreia desta companhia mostrou que ela não seria passageira: realizada no Hotel Itaimbé na cidade de Santa Maria, em apenas duas sessões, juntou um público de mais de 2000 pessoas – o que acabou naturalmente encaminhando uma sequência de apresentações dentro e fora do Estado, e até fora do país durante três intensos anos. Com esse embalo, a Retalhos engatou a primeira, a segunda e seguiu, sempre propondo-se novos desafios. Foi nesse passo que, no despontar do ano 2000 surgiu a primeira proposta do projeto Passageiros da Alegria via Lei de Incentivo à Cultura, propondo uma novidade à época: a atuação teatral dentro dos ônibus do município, de modo a percorrer as linhas urbanas e acompanhar os cidadãos fortuitamente surpreendidos pela encenação de palhaços que lhes aliviavam o peso da hora de ir e vir do trabalho.
A ideia deu certo e possibilitou à companhia a oportunidade de trilhar diversos caminhos até hoje, mais de 20 anos depois, e desenvolvê-la de formas diferentes para os mais variados públicos, de asilos a creches, passando por APAES, Hospitais e festivais de teatro como o FETEG, no qual os Passageiros estacionaram carregando como bagagem muito improviso, risadas e interação com o público. O segredo de tanta longevidade? A proposta é sempre adaptada, e sempre se estrutura na interação – e, principalmente, na cocriação – com aquele público no local (ou veículo) onde se encontra. No caso do FETEG, escolas primárias iriam ser o público a assistir à peça, e o local escolhido foi uma praça. Neste dia, as crianças assistiram a um espetáculo com três partes. Inicialmente, aconteceu a chegada dos palhaços Divo Minuano e Pirulício Passo das Tropas (gaiteiro) em meio à praça, cantando várias músicas folclóricas e fazendo com algumas brincadeiras com o público para conquistar uma “intimidade”. No segundo momento, houve a contação de uma história, “O Menino Que Queria Voar”, com o uso de fantoches. Por fim, foi proposto um jogo de improvisações com a plateia, em que alguns eleitos dentre o público presente criaram (ou tentaram criar) as cenas na hora – momento que é o eixo motor do espetáculo.
Neste modus operandi, se, por um lado, esta obra tem como característica fundamental a adaptação construída em cima do local simultaneamente à da interação com o público, que é bastante presente na palhaçaria, por outro a sequência não apresenta uma preocupação grande com a costura entre as partes, até porque são as inter-ações e as respostas da plateia que vão ditando o ritmo da obra. A parte final conduz a um coroamento dessa soberania de quem assiste, já que, com alguns poucos elementos cênicos de figurino, algumas pessoas que estavam assistindo são convidadas a criar e encenar uma história na hora, para os demais verem. Essa proposta é arriscada, mesmo dentro das práticas dos palhaços mais experientes, porque vai além do jogo de interação pronto e pré-planejado e deixa nas mãos das pessoas convocadas na hora o poder de conduzir a narrativa, fato que tem potencial grande de gerar situações caóticas, que exigem muita agilidade de resposta para segurar o trem do espetáculo nos trilhos. Como passageira deste trem, fui inclusive chamada para ser uma destas personagens “espontâneas”, por vezes, achei que íamos descarrilhar, mas a dupla segurou nossos vagões e muito habilidosamente soube usar na hora certa elementos como a figura rara de um pequenino candidato a dinossauro, de cerca de 4 aninhos de idade, que fez questão de encenar com nosso grupo, e nos presenteou a todos com um show à parte.
Tendo a pensar que seria mais interessante termos assistido à peça dentro do ônibus escolar, e não em uma roda “estática” na praça, dada a dinamicidade da obra cênica, que acontece com muita potência no encontro entre estes passantes passageiros, elenco e elencados. Penso que esta natureza de intervenção artística, quando em um local quase claustrofóbico como um transporte coletivo, possivelmente amontoado de gente cansada e com pouca predisposição à arte – dado o talento dos Passageiros/condutores Helquer Paez e Julio Aranda – amplifica sua dimensão simbólica. A ideia de realizar um espetáculo “móvel” e de caráter surpresa para um ônibus de linha traz a potência dessa situação de arte de intervenção cuja fugacidade condicional é inexorável, já que, além do palco, a própria plateia é móvel e está num universo de entra e sai e de vem e vai.
A peça Passageiros da Alegria é a metáfora da própria Cia Retalhos de Teatro, que, nestes quase 30 anos de trabalho e dedicação à arte, já teve mais de cem Passageiros integrando seu elenco, mas manteve sempre a figura de seu maquinista – Helquer, o fundador e único membro original remanescente. É neste trem que segue firme até hoje que atores e público entram em uma viagem conjunta para sair do cotidiano e chamar duas passageiras que, apesar de muito especiais, muitas vezes deixamos pelo caminho apressado de nossas vidas: a alegria e a (auto)invenção.
A equipe do AGORA Crítica Teatral foi convidada pelo Festival de Teatro de Gravataí. A produção crítica faz parte do eixo Conexões Reflexivas.
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Elenco e Direção: Helquer Paez e Julio Cesar Aranda