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Os desafios identitários da chamada Era Contemporânea, a qual habitamos e construímos diariamente, são muitos para os artistas, a começar pela própria nomenclatura. O que se chama atualmente Circo Contemporâneo assim é chamado muito mais em contraposição ao denominado “circo tradicional” ou, historicamente classificado, “circo moderno”. Essa definição foi usada com força na década de 1970 para distinguir os artistas de circo que aprenderam técnicas circenses em escolas, academias, ou mesmo na rua, sem ter necessariamente um vínculo de parentesco entre si ou com seus professores e instrutores dos de famílias tradicionais de circo – que costumam transmitir seus saberes e fazeres apenas em núcleos familiares, os quais se organizam em geral em grupos nômades que circulam por muitos territórios levando sua arte secular. Vale ressaltar que o termo foi encampado pelo movimento do “Novo Teatro” nos EUA, encabeçado por nomes de peso como o de Peter Brook, que na época da New Age buscava também quebrar com os paradigmas das artes cênicas para reconstruí-las por meio de hibridismos e experimentações. Em paralelo, no velho continente, em solo francês, à mesma época um movimento semelhante de artistas também recebeu o nome de Nuveau Cirque – o qual segue sendo utilizado até hoje por muitos grupos circenses.
Diante dessa saga nominal, o que é instigante pensar em respeito ao circo é que, seja ele o dito “tradicional”, “moderno” ou “contemporâneo”, a base desta arte é o hibridismo: sob a lona ou sobre o palco do circo passaram uma vasta gama de atrações como os Freak Shows nos EUA, as apresentações de cantores folk nos EUA e sertanejos no Brasil, os shows de luzes de laser e a “dança das águas”, assim como a prática da doma de animais domésticos e selvagens– já proibida em nosso país. Não é à toa que é comumente usado para um conjunto de apresentações circenses o termo varieté. Nesse universo, em Porto Alegre, temos um grupo que há cerca de duas décadas vem atuando na nossa região initerruptamente – fato que mereceria um belo estudo de case de sucesso no contexto de ampla depreciação e desvalorização da cultura em que se encontra. O nome da brava trupe? Circo Híbrido. Dito assim, parece que o grupo incorre em redundância, mas não: de fato, este nome faz jus à vontade de seus criativos fundadores Tainá Borges e Luís Cocolichio de borrar ainda mais as fronteiras do que é considerado um número ou um show de circo, pesquisando abordagens interdisciplinares ao atravessar diversos outros campos artísticos ao longo de sua existência, com foco especial na dança.
Dada essa apresentação, nada mais natural ao grupo do que conceber um projeto chamado Atravessamentos, pensando em levar à potência máxima esse hibridismo. O que chama a mais a atenção na trajetória deste espetáculo, no entanto, é que, no meio do caminho do Atravessamentos havia uma pedra, ou pior: uma pandemia.
Por conta disso, apesar da natureza inerente ao circo, assim como ao teatro e à dança, ser a presencialidade coletiva em cena, Atravessamentos, como centenas de outros espetáculos nesta época, teve de atravessar uma fronteira logo de saída: foi feito em formato de vídeo. O resultado pode ser apreciado no link https://www.youtube.com/watch?v=Up9ir1L8HYg&t=1s .
Pois bem, essa travessia textual toda se deu aqui para falar do Atravessamentos de 2022, 5ª edição do projeto. Este ano ele só pôde se materializar em presença sobre o palco graças ao edital de ocupação do Teatro Glênio Peres, da Câmara Municipal de Porto Alegre, que mantém duas vagas específicas para o circo, segmento geralmente excluído de mostras e festivais – ditos – de Artes Cênicas. Diante de tal histórico, é inevitável a análise deste processo de atravessamento de uma ideia cênica que, por meandros do destino, concretizou-se antes em uma obra audiovisual que opera com toda a ampla gama de opções de cenário e fecha seu ciclo tendo de se (re)materializar em um palco considerado por muitos da classe como pequeno para quem trabalha com equipamentos aéreos.
As comparações para quem viu o vídeo, como eu, eram inevitáveis, assim como o são as dos leitores ao ir ao cinema assistir a uma obra favorita transformada em película; porém, nesse caso, há um caminho inverso, pois a visualidade muito peculiar de Atravessamentos já estava dada em meu imaginário: sua imagética onírica, sua tonalidade predominantemente cinza e marrom e a contraposição entre ambientes intimistas de confinamento e cenas em meio à vastidão da natureza, com árvores imensas, ou da selva urbana com seu cimento já estavam postas. Ainda, antes de entrar na sala, eu me perguntava: como (e faria sentido?) transpor para a cena em pós-pandemia a sonoridade as divagações poéticas em off feitas por cada artista em um momento tão sofrido?
A resposta do Circo Híbrido absolutamente superou minhas expectativas, a começar pela entrada: na antessala das escadas do teatro, encontramos um quadro digno de foto: a contorcionista Agatha Andriola tomando café com uma postura insólita, imersa em um cenário intimista. Entrando na sala, uma surpresa: uma estrutura de metal com praticamente a altura do teatro havia sido montada exatamente sobre a plateia, e um tecido – da mesma tonalidade marrom usada em 2021 – jazia pendurado no meio dela. Em cena, alguns vasos de plantas penduradas, uma mesa, uma poltrona (também presentes em 2021) e um curioso aparelho aéreo, criado especialmente para o espetáculo: um tecido marrom com dois galhos grossos amarrados horizontalmente, que retomava de maneira inusitada as árvores onde foram gravados os números na edição audiovisual. Os artistas encontravam-se espalhados, e o tom de suas roupas e da luz recompunha essa atmosfera intimista e um pouco lúgubre que eu guardava em minha memória. Por fim, diante do palco: as técnicas de som e luz estavam visíveis em sua mesa, entre a plateia e o palco, e junto a elas a trilha sonora era feita ao vivo pelas mãos sensíveis e a guitarra de Viridiana.
A sequência de números circenses – força capilar, malabarismo, equilibrismo e tecido acrobático, abordado de três diferentes formas – ao melhor estilo varieté ocorreu de maneira fluída, com uma cadência de movimentações de todos os sete artistas circenses para compor cada cena, usando-se ainda como parte do cenário a projeção de trechos do vídeo sobre as paredes, a base e até o teto do teatro (o mais plasticamente interessante, a meu ver). O uso da voz ao vivo com algumas falas me pareceu um pouco frágil, mas todas as abordagens das técnicas circenses foram visualmente muito potentes. Dentre muitos momentos, mas vale ressaltar: a figura sem face de Agatha Andriola, em contorce e pendurada pelos cabelos em um cabo içado pela força coletiva dos colegas; o momento do malabarismo “à exaustão” concebido por Gabriel Martins, onde o jogo se coloca pela maneira incomum de manipular a relação entre o corpo do artista e as bolinhas, de modo a provocar, em algum momento uma “falha” (a queda de uma delas), a qual é usada para criar imediatamente uma nova relação de lançamento, de modo que a movimentação nunca para, transformando-se de maneira ininterrupta; a composição criativa e coletiva dos artistas em diversas cenas que flertavam com o surrealismo sem, no entanto, descolar do comentário da realidade atual, como o uso de legumes para a composição cênica ou à bem humorada crítica à inflação causada pelo governo atual, feita por meio dos dizeres de uma sacola de compras.
O conjunto da obra faz de Atravessamentos um espetáculo poeticamente intimista, que imerge o espectador no universo composto pelos artistas e técnicos em cena, criando uma atmosfera onírica e ao mesmo tempo provocadora. Por tudo isso, faz jus não apenas ao próprio nome, mas ao nome de sua trupe, e ao daquele indelével e ao mesmo tempo intangível conceito do que chamamos arte contemporânea: trata-se de um circo que transborda o formato imagético hoje tido como tradicional para flertar performaticamente com as artes visuais, com o teatro, com a música não convencional, com a dança, com o audiovisual sem esquecer a raiz da qualidade da técnica circense nem o compromisso em falar das questões do contexto histórico em que estamos inseridos. Muitas honras ao Circo Híbrido e a tudo que atravessou e atravessa para seguir (re)existindo!
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Direção: Tainá Borges e Lara Rocho
Elenco: Tainá Borges, Luís Cocolichio, Lara Rocho, Maílson Fantinel, Agatha Andriola, Guilherme Capaverde e Gabriel Martins
Trilha Sonora: Viridiana
Cenografia: Luís Cocolichio
Projeto de Iluminação: Carol Zimmer
Operação de Luz: Bruna Casali
Audiovisual: Sal Fotografia
Operação de vídeo: Jéssica Alvarenga
Projeto Gráfico e Assessoria de Redes: Mônica Kern
Produção: Vado Vergara
Realização: Circo Híbrido