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Há uma expressão muito comum quando se quer dizer que está em casa, ou melhor, quando se decide o local em que se pretende passar a vida: criar raízes. A analogia com o mundo vegetal: permanecer num único local, nutrir-se da terra em que habita, estar plantado, ser podado, florescer e frutificar em um mesmo lugar talvez seja a metáfora perfeita para escolhas definitivas. Mas e quando essas escolhas não são escolhas? Quando essas raízes são fruto de condições aleatórias ou mesmo consequências de um plantio equivocado, imprevisto, indesejado? Penso nisso quando mergulho no universo claustrofóbico de A árvore, novo texto dramatúrgico de Silvia Gomez, autora de textos contundentes como Neste muito louco, nesta noite brilhante (2019); Mantenha fora do alcance do Bebê, prêmio APCA de 2015; O céu cinco minutos antes da tempestade, escrita no Círculo de Dramaturgia do CPT, Centro de Pesquisas Teatral, sob coordenação do icônico e saudoso Antunes Filho, entre outros.
Neste novo texto, estamos diante de uma metamorfose, de uma mulher que lenta e gradualmente se transforma em planta. A., a personagem que sozinha em seu apartamento dialoga com um "você" – personagem ausente, indefinido ou imaginário (talvez apenas uma reminiscência, um resquício de humanidade de antes da transformação completa que a consome) –, relembra e sublinha detalhes ínfimos, mínimos, de um cotidiano que a absorve. São lembranças repletas de pequenas sensibilidades, um xícara que se parte, um bilhete, uma galeria de fotos em uma rede social, mas também de uma vizinha, Sabina, a mesma que lhe deu a pequena planta que parece ter contaminado seu corpo com a transmutação que a submete.
É nessa narrativa sensorial, subjetiva, emocional a que somos submetidos em A Árvore. É nesse lento transformar-se, como seiva escorrendo pela superfície de um corpo em mutação, a que somos transportados. A visita ao apartamento de Sabina, com suas nuances de ruína e floresta, de névoa, de emaranhado e solitude, parece levar A. a uma nova perspectiva de sua solidão. O apartamento vazio, abandonado, com suas responsabilidades compartilhadas, suas plantas crescendo desordenadamente, parece aprisionar a personagem ainda mais em sua transmutação, em sua inércia e imobilidade. Tal como no apartamento abandonado de Sabina, o abandono e a solidão de A. parecem criar raízes em suas memórias, em suas neuroses e idiossincrasias.
Escrito no período pandêmico, entre 2020 e 2021, exibido como audiovisual nas plataformas digitais conforme exigência do momento, com atuação de Alessandra Negrini, sob direção de Ester Laccava e João Wainer, o texto remete de modo sensível e metafórico ao claustro necessário e muitas vezes asfixiante a que as populações foram submetidas. O temor pela doença e sua ameaça de aniquilação em larga escala, a distância e o receio de uma pessoa em relação a outra, o risco do contato físico, do abraço, das demonstrações mais usuais de afeto parecem ser um pano de fundo para a metamorfose da personagem, para sua condição de enraizar-se, de criar folhas e ramos, nutrindo-se do sol pelas janelas, no quase silêncio do isolamento urbano.
As 43 cenas do texto de Silvia Gomez funcionam como trechos de um diário, de um relato solitário – cartas a um remetente indefinido e possivelmente distante demais para ser alcançado. Há um quê de testamento, de carta de despedida no teor das palavras da personagem. No prólogo, cena 0, a personagem Atriz, que retorna apenas no final da cena 42, alerta para os riscos dessa leitura quando questiona de quem é o rosto que está no reflexo, quando informa que A. ainda não está pronta para sua música preferida, e que, no momento, apenas os sons da floresta sublinham seu relato. A Atriz, quando reaparece quase no final do texto, reafirma sua posição como narradora onisciente, fora do contexto claustrofóbico e espectral em que A. está inserida. A Atriz parece saber, do exterior, sobre os riscos do isolamento extremo.
Na última cena, há um elemento externo: batidas na porta. A. está praticamente metamorfoseada no ser de seiva e sangue que narra, imobilizada em suas memórias, no relato interior que ameaça a silenciar como um tronco, uma folha. Batidas na porta. Quem será? Alguma equipe de resgate? Sabina, há tempos ausente, mas nunca esquecida? O inesperado, o imprevisto, a supresa de um visitante capaz de nos salvar a vida? Será?
A Árvore, de Silvia Gomez
Editora Cobogó, 2021
80 páginas
R$ 42,00
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