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A produção artística comumente denominada “dança contemporânea” é gigantesca em seu leque de possibilidades de manifestações, intersecções com outras artes e temáticas de abordagem, apesar de o termo ser bastante problematizado dentro e fora da academia, principalmente por sua ambiguidade temporal (afinal, a dança produzida em um determinado tempo não seria inerentemente contemporânea a ele?). A propósito, diante do momento histórico global contemporâneo que estamos vivendo, de retorno de movimentos de extrema-direita bastante conservadores e recheados de preconceitos que variam de acordo com o gosto dos fregueses de cada local onde se manifestam, a dança contemporânea parece trazer para os bailarinos uma arma potente. Mas vejam bem: “arma potente” no bom sentido dessas duas palavras, já que ambas se encontram insistentemente usadas nos escusos discursos armamentistas e sexistas dessa famigerada cáfila no Brasil – a qual, como bem referida recentemente por Juca Ferreira, ex-ministro do falecido ministério da Cultura de nosso desfalecido país, de tempos em tempos emerge das profundezas, tal qual uma doença que ressurge ao diminuir-se a imunidade da nossa pátria mãe (nem tão gentil para alguns).
Nesse contexto, faz-se profundamente necessária nos dias de hoje a pauta levantada por Macho Homem Frágil, espetáculo de dança contemporânea concebido em uma parceria entre a Ânima Cia de Dança e a Eduardo Severino Cia de Dança. Essa primeira coreografia solo do bailarino e coreógrafo dirigida por Eva fala sobre os homens não só do Rio Grande do Sul, cuja alcunha mais atribuída às pessoas nativas portadoras dos cromossomos XY é “macho”, sempre entoada junto ao termo “gaúcho” de maneira a soar como um elogio daqueles de fazer estufar o peito. Segundo a coreógrafa, que já criou anteriormente um espetáculo sobre a violência contra as mulheres, este mitológico termo oprime e assombra não apenas os homens nascidos em nosso Estado, mas em todo o nosso país e na América Latina. A figura mito(-)lógica do homem macho, estereótipo folclórico normativo de um ser humano que nunca pode chorar e deve demonstrar força e usar da violência (sempre que “necessário”) para resolver quaisquer impasses foi o foco da pesquisa inicial de Eva e Eduardo, dando luz a uma célula coreográfica.
A trajetória de criação do espetáculo é bastante interessante, pois mostra alguns dos caminhos percorridos pelos artistas para criar nestes tempos bicudos: nesta cena, o bailarino faz uso de seu perfil físico – bastante próximo deste tipo “ideal” socialmente imposto: alto, forte, branco e careca – em uma cena onde começa a se “pilchar”, ou seja, veste os trajes típicos da figura folclórica do gaúcho, e deixa esta roupa conduzi-lo numa série de movimentos mais brutos e duros, alguns dos quais referenciados em danças típicas tradicionalistas, como a conhecida chula. Depois, peça a peça, o bailarino vai retirando os itens deste vestuário e, a cada peça da qual se despe, mais liberdade de movimentação seu corpo ganha, até que se livra completamente dos grilhões. Esta célula-matriz, quando inicialmente criada, foi apresentada em casas noturnas para apreciação e diálogo com o público.
Dada a boa receptividade desta então performance, foi feita uma campanha de crowdfunding, à qual foi somado um auxílio emergencial durante o período da pandemia, para se conceber um vídeo. O projeto ainda ganhou um edital do FAC (Fundo de Apoio à Cultura do Estado), para ser adaptado para os palcos. Felipe Azevedo foi chamado para compor a trilha sonora, responsável por criar uma atmosfera bastante densa na primeira parte do espetáculo, o qual se abre com uma sequência de falas que remetem às vivências de infância e à educação que Eduardo, como a maioria dos jovens gaúchos, recebeu. A primeira fala, vinda da voz do próprio bailarino que ressoa em off é “engole o choro”. E é justamente com base neste choro sufocado que se constrói a primeira sequência de movimentos. Em um cenário minimalista – concebido por Eva e Mano Ribeiro – que conta apenas com uma cadeira e o figurino sobre o palco, este corpo sem ar, contido e acorrentado pelas frases iniciais, busca se descobrir, luta pra se soltar de um peso que o oprime até o levar ao plano do chão. O bailarino se movimenta atônito e perdido, agravando uma angústia que o leva a se despir de seu figurino inicial para buscar se encontrar nas vestes daquele homem normativo que se lhe impõe.
Na sequência dramatúrgica, depois da luta contra as vestes impostas, que originou o espetáculo, este corpo-homem se descobre livre e finalmente se veste como quer: uma calça jeans, e se permite chorar, primeiro de forma contida, até catarticamente movimentar-se para botar para fora tudo que o sufocava, e então poder se encontrar e ser quem ele é: um ser humano múltiplo, livre de amarras e, por isso mesmo, feliz. Essa liberdade é envolta pela delicada trilha final, contrastada pelos adereços à la viking e pela movimentação leve e solta, com destaque especial para a última cena, que compõe um singelo porém belo pas de trois de Eduardo com suas duas sombras refletidas ao fundo do palco, sob a iluminação de Guto Grecca. Finalmente, percebemos que a mesma arma que se aponta às mulheres, de alguma maneira, acorrenta também os homens: se a luta feminina é mostrar que o lugar da mulher é onde ela quiser (e não na cozinha ou na frente do tanque de lavar roupas, como alguns insistem ainda), também é importante desmistificar a figura masculina, para que, assim, nossos meninos aprendam desde jovens que podem falar, sentar, caminhar do jeito que quiserem, chorar se sentirem vontade e, fundamentalmente, ser felizes do jeito que são.
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Direção: Eva Schul Bailarino-criador: Eduardo Severino Trilha sonora: Felipe Azevedo Cenografia: Eva Schul e Mano Ribeiro Cenotécnico: Mano Ribeiro Desenho de Luz e operação: Guto Grecca Operação de Som: Driko Oliveira Captação de Imagem: Isabel Ramil e Leo Cabeoli Edição de Imagem: Leo Cabeoli Arte Gráfica: André Varela Fotos: João Mattos Assessoria de imprensa: Roberta Amaral Produção: Luka Ibarra Apoios: Um Bar & Cozinha/ Venezianos Bar