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“Uma flor nasceu na rua!
[...] Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio...”
Quando Drummond é citado em Arena Selvagem (2018), espetáculo teatral do Grupo Cerco, sua carga poética se expande. Dilata-se no tempo e espaço do encontro. Não é qualquer encontro; ainda que autorizado, trata-se de um convite provocativo ao instintivo de cada um.
O que há de mais selvagem em nós?!
Com uma dramaturgia fragmentada e autoral, composta por narrativas cênicas, aparentemente distintas, mas que se entrelaçam na microfísica do poder com suas verticalidades e rupturas, o espetáculo vencedor do 14º Prêmio Braskem em Cena como Melhor Espetáculo (Júri Oficial e Júri Popular), de cinco categorias do Prêmio Nacional Cenym em 2019 e do Prêmio Açorianos de Melhor Direção em 2018, retornou em curta temporada neste ano de 2022 no Teatro de Arena em Porto Alegre, após dois anos parado devido ao isolamento social em decorrência da pandemia pela Covid-19.
Em cena, atores e atrizes assumem diferentes personagens que se compõem a partir das suas vivências e dramaturgias corporais, criando um tom nonsense entre o fantástico e real, na aproximação com o público presente. Não se destaca uma personagem, a alternância entre histórias e partituras compõem o mapeamento/escritura de cada persona, por vezes, dramática; em outras, cômica (quando a comicidade beira o trágico das relações humanas). Máscaras brancas como crânios de animais, aliadas a grunhidos primitivos em meio à baixa iluminação, compõem o desenho inicial dessa obra cênica-performática-visual contemporânea, ao pensá-la como uma exposição dinâmica e mutável da organicidade humana que confere ao instinto (animal x humano) a transitoriedade entre o aceitável e o não aceitável, entre o civilizado e não civilizado.
Essa pergunta parece ressoar, a todo momento, enquanto o espetáculo nos é apresentado e à medida que imergimos em sua animalidade, tornando-nos parte da arena cenográfica e simbólica criada, com cenografia minimalista, onde o grotesco e selvagem intrínseco em cada um se revela, tencionando conflitos e problemas incutidos ao ser humano a partir de uma sociedade opressora, dentro de um processo “civilizatório” que delimita e determina valores e hábitos. O mito do bon sauvage. Alcunhado pelo filósofo franco-suíço Jean-Jacques Rousseau, o 'bom selvagem' era visto como bom por viver de um modo natural e em harmonia com a natureza, sendo o seu contato com a civilização e suas verdades normativas que o descarecterizavam e poderiam transformá-lo em 'mau civilizado', vivendo em desequilíbrio com seus semelhantes. Em uma das cenas, uma macaca é forçadamente domesticada, retirada de forma violenta de seu habitat natural para se tornar "civilizada". Já no Brasil, ocupado e explorado por Cabral, povos indígenas foram e são tratados como selvagens que precisam ser civilizados (Para quem?!)
A maleabilidade mutável e adaptável das organizações de poder, que são relacionais e se revezam de acordo com os contextos e jogos instintivos de sobrevivência, em uma perspectiva Foucaultiana da microfísica do poder, onde poderes periféricos se organizam criando novas articulações e relações, como a empregada oprimida pelos padrões que, não aguentando mais tal situação, torna-os vítimas de sua própria opressão; a mulher violentada sexualmente; a macaca domesticada; a automatização tecnológica; o ringue de luta entre duas mulheres... O que move nossos instintos selvagens?
A força do teatro imagético se faz presente a todo momento na proposta, que, em consonância com a iniciativa coletiva autoral de músicas e texto – ainda que livremente inspirado em obras como a poesia de Drummond (lá do início) – a direção precisa de Inês Marocco e o olhar atento, com trabalho de atuação intenso e de pesquisa de todo o Grupo Cerco, confere ao espetáculo Arena Selvagem um importante protagonismo nas artes da cena gaúcha. Traz um viés social e político engajado, pautando questões relacionais humanas que rompem com estruturas pré-estabelecidas, como fissuras, provocando a reflexão e a construção de novas narrativas em meio a tantos absurdos existentes na nossa micro e macro política social. Um fazer artístico visceral, como mote e ato de resistência, atual e necessário em tempos sombrios.Como uma flor. Que ilude a polícia. Que rompe o asfalto.
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Criação coletiva do Grupo Cerco Livremente inspirado em textos de Carlos Carvalho, Franz Kafka, Carlos Drummond de Andrade e do grupo. Direção: Inês Marocco Assistência de Direção: Kalisy Cabeda e Manoela Wunderlich Dramaturgia: Celso Zanini, Elisa Heidrich e Marina Kerber Elenco original: Anildo Böes, Celso Zanini, Elisa Heidrich, Kalisy Cabeda, Manoela Wunderlich, Martina Fröhlich, Marina Kerber, Philipe Philippsen Stand-in: Eduardo Schmidt Trilha sonora original: Celso Zanini, Martina Fröhlich, Philipe Philippsen Iluminação: Carolina Zimmer Figurino: Daniel Lion Confecção de máscaras: Diego Steffani Cenografia: Rodrigo Shalako Programação Visual: Marina Kerber Tradução e Interpretação para LIBRAS: Ângela Russo Audiodescrição: OVNI Acessibilidade Universal Produção e Gestão: Daniela Lopes / Cardápio Cultural e Kreativ Produções Culturais Produção executiva: Daniela Lopes Realização: Grupo Cerco – 10 Anos Apoio: Fecomércio SESC Financiamento: FAC Pró-cultura e Governo do Estado do Rio Grande do Sul