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No texto do dramaturgo e diretor da Téspis Cia. de Teatro de Itajaí (SC) Max Reinert, Blow me up ou um ensaio sobre a natureza dos homens bomba [1] (Editora Urutau, 2021), há uma cena que parece resumir ou mesmo sintetizar uma sensação que se desdobra e aprofunda no desenrolar da narrativa. A personagem Mulher que Serve o Café, que outrora tinha a intenção de salvar o mundo enquanto servia café, que deixa lençóis esticados e a casa impecável, se vê forçada, após fazer compras, a entrar no carro pela porta do bagageiro. Alguém inadvertidamente estacionara próximo demais à porta do motorista. Ela acomoda suas compras, 30 litros de água sanitária, e quando vai sair da vaga em que está, quase atropela um homem que passa. O homem, muito nervoso, grita e xinga, e ela, a Mulher que serve o Café, gentil e altiva, tenta contornar a situação com delicadeza. Sem sucesso, ela espanca o homem com uma barra de ferro e o faz beber os trinta litros de água sanitária.
De certo modo, essa é uma estrutura que se repete no texto como um todo, essa calma em contraste com a violência homicida, essa gentileza recheada de explosões e morticínios. As personagens que se alternam na dramaturgia, com afetividades artificiais, mecânicas, parecem dialogar a partir de seus próprios monólogos interiores. Não efetivamente uma conversa, uma troca de informações, mas uma sensação compartilhada de impotência e revolta, de solidão e ansiedade que os une em torno de suas próprias inquietações, de seus traumas e perspectivas frustradas.
As personagens não possuem nomes específicos, mas são designadas por ações ou estados: a Mulher que Serve o Café, a Criança que Joga e o Homem que Espera Sentado, e posteriormente, são chamados por Mulher que Corta o Bolo, Mulher que Serve o Bolo para o Homem, Criança Parada, Criança que Volta a Jogar e Mulher que Gira Olhando o Lugar Onde Está e Tem uma Faca Cravada nas Costas, entre outras variações.
Esse modo de aparente despersonalização, privando os personagens de seus nomes, gera múltiplas possibilidades de constituição de identidades. O homem, que espera sentado, para quem a mulher serve bolo e posteriormente se torna o Homem Sendo Vestido para o Trabalho, revela estados de passividade e poder sugeridos pelas designações de ação, enquanto a mulher, com toda sua voluntariedade e carga opressiva de funções, sub-repticiamente, se revela prestes à violências incontroláveis. Esse procedimento se repete em outras obras do autor. Em Pequeno inventário de impropriedades e Índice 22 as personagens são designadas apenas nas rubricas, nas indicações de ação, quando tanto. Em textos como Meteoros e Tomara que não chova, as designações Ele e Ela constituem a totalidade de informações que descrevem ou caracterizam as personagens.
A sensação de aparente tranquilidade familiar em contraste com as contínuas pulsões de fúria e violência premeditada se revelam como um procedimento basilar, retroalimentado pela aparente apatia das personagens, que em meio à calma acachapante de um cotidiano desgastante e asfixiante, parecem tender aos gestos e as ações extremamente impulsivas. Os programas de TV, a notícia de um homem-bomba que circula tranquilamente pelo ambiente antes de explodir-se, não parece chocar ao homem que assiste, mas se tornar um modelo. As propagandas e suas conotações de felicidade pela posse de determinado produto, as garantias por tempo determinado, são entendidas como paralelos mais profundos, ligados à desesperança, ao medo e ao desamor: “E então / eu entendi / Era isso que eu precisava na minha vida: / Dois anos de garantia / Dois anos em que nada pudesse dar errado…”.
A Criança que Joga é uma personagem que parece ter um papel reflexivo no embate velado entre o Homem que Espera Sentado e a Mulher que Serve o Café. A criança, em meio a suas ações, tirar a mesa do café, jogar, esperar, de modo sutil, comenta os estados emocionais dos adultos, faz correlações e paralelos a partir de objetos do cotidiano. Compara o conforto do lar aparentemente estruturado em que vive com fragilidade da casca do ovo que consomem, a delicada barreira que separa o mundo exterior repleto de movimento e violência e a fina película prestes a ser rompida inesperadamente para saciar a fome do mundo. A criança, tal como designada, parece jogar com as sensações, com as palavras. Ela comenta a ação sem descrever o que acontece, estabelecendo um jogo de conotações, de sensibilidades que nunca são claras, mas delineiam um universo emocional denso e passível de reverberações constantes.
A presumível passividade do Homem que Espera Sentado, tal como a calma homicida do homem-bomba do noticiário da TV, esconde uma potência de ação que tensiona e constrasta com as nuances surrealistas do texto. Em determinado momento, quando é designado como Homem que tem os Pulsos Cortados Escondidos Pela Mesa do Café, ele sangra em segredo enquanto fala. Há uma ambivalência de tempos, pois na cena anterior presume-se que o café da manhã está encerrado, pois a criança é designada como Criança que Tira a Mesa do Café da Manhã e Criança que Dobra a Toalha de Mesa. Mesmo assim, o homem sangra tentando esconder o seu lento esvair-se, num anseio nunca realizado por explodir-se, ter um fim rápido, “transformar-se num clarão”.
Há na sequência uma cena tripartida, no sentido da simultaneidade que a diagramação na página sugere, com as personagens listadas em colunas, com as falas espaçadas no papel, como que sugerindo pausas, coralidades ou mesmo aglutinações das mensagens. A diagramação do texto é repetidas vezes usada como elemento de ambiguidade na leitura, indicações de ritmo ou mesmo de sentido, como na cena em que a frase dita pela Mulher que Gira Olhando o Lugar Onde está e Tem uma Faca Cravada nas Costas, “Então / morrer / é assim?”, que espraia-se por toda a extensão da página, sugerindo, talvez, uma longa pausa ou lentidão na enunciação.
A última cena, O sol começa a aparecer, como num ritornello, traz um novo café da manhã, com a aparente normalidade plástica de um comercial de margarina, que com a devida ironia, aponta para uma calma recheada de profunda angústia. É como se todos os delírios suicidas e violências premeditadas escapassem por janelas ensolaradas e cafés fumegantes das manhãs em família. A expectativa de mais um dia igual aos outros, a insanidade camuflada atrás dos sorrisos e o silêncio, o brutal e irremediável silêncio dos solitários em meio às multidões, parece eclodir num enredo beckettiano, sem soluções ou esperanças visíveis. A não ser, claro, a luz acachapante e breve de uma explosão, seguida de um novo silêncio, e mais nada.
[1] A obra Blow me up ou um ensaio sobre a natureza dos homens bomba já havia sido publicada pela Editora Multifoco em 2013 dentro do projeto Coleção Dramaturgias, da Revista Questão de Crítica. Na publicação além de Blow me Up continham os textos do mesmo autor Pequeno inventário de impropriedades e Meteoros.
Afonso Nilson de Souza é dramaturgo e crítico teatral, Doutor em Teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), autor de O ator impuro (Proscênio Editora, 2020).
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Blow me up ou um ensaio sobre a natureza dos homens bomba, de Max Reinert
Editora Urutau, São Paulo, 2021.
52 páginas
R$ 45,00