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Ligamos a televisão. Noticiário. Fogo. Árvores queimando. Animais em fuga. Desespero. A floresta em chamas. “Amazônia e Pantanal sofrem com o pior ano de queimadas da História”, diz a manchete do telejornal. Junto a ela, os dados oficiais - quase sempre subnotificados - ratificam o que parece tão evidente ao nosso olhar, embora tão distante de uma real compreensão da gravidade atrelada à situação: nos últimos anos, os desmatamentos, as queimadas e a redução da biodiversidade brasileira aumentaram vertiginosamente. Apenas entre agosto de 2019 e julho de 2020, por exemplo, as áreas desmatadas foram quase 40% maiores se comparadas com o mesmo período no ano anterior. A área verde derrubada equivale a oito vezes a cidade do Rio de Janeiro. As que o fogo consumiu, podem chegar ao dobro disso.
No entorno desta questão, o extermínio despudorado de nossa fauna e flora e o desrespeito com os povos originários que residem nas florestas - e resistem há séculos, lutando com um espírito indômito por ela - mesclam-se como baluartes de um projeto cíclico de destruição. O garimpo ilegal invade reservas indígenas, o desmatamento ilegal adentra a mata e os animais machucados, assustados e expulsos de seu território buscam refúgio para além de seu habitat natural. Somando-se a isso, projetos de lei passam a fomentar, flexibilizar e permitir a mineração em terras antes protegidas, bem como a importação e liberação de armas, agrotóxicos e fertilizantes. O Brasil queima. O Brasil arde. O Brasil atual subtrai a sua própria beleza.
Ao assistir a estreia do espetáculo para crianças “Amazônia: um olhar sobre a floresta” do Projeto Gompa de Porto Alegre (RS), percebo que todas estas questões entrelaçaram-se intensamente. Enquanto o assistia - ainda que nem todos os pontos supracitados tenham aparecido literalmente ao longo do espetáculo - pensava sobre os problemas políticos que atravessam a atualidade do tema. E, mesmo que a peça tenha me despertado mais sensações, alusões fragmentadas e perguntas a partir daquilo que se mostra no palco, a relação imediata com o agora político de nosso país foi inevitável. Não obstante, esse é o primeiro ponto que ressalto deste novo trabalho do Projeto Gompa: a atualidade e a relevância de sua temática, bem como a importância de suas discussões que espraiam-se para o campo do teatro infanto-juvenil, dialogando com as crianças de uma forma didática sem, contudo, tornar-se simplista em suas abordagens. É um olhar sobre a floresta e sobre questões urgentes de nosso tempo destinado ao público infantil sem subestimar esta faixa etária (o espetáculo abrange, sobretudo, as crianças de 3 a 10 anos de idade), mas sempre atento ao fato de que são crianças e de que é preciso levar isso em consideração nas escolhas elencadas.
A encenação de Camila Bauer propõe ao espectador adentrar a floresta amazônica através do jogo dos atores bailarinos em cena e de belas imagens que, lúdicas, dialogam com nossas referências de um lugar que nos é distante - pensando de onde, geograficamente, estamos falando e assistindo, uma vez que o espetáculo foi produzido em Porto Alegre (RS), sul do Brasil. O trabalho corporal do elenco (composto por Fabiane Severo, Guilherme Ferrêra e Henrique Gonçalves) é o grande destaque do espetáculo, pois concede sustentação às principais propostas da direção cênica, bem como para a dramaturgia que aposta na linguagem não verbal e precisa do vigor físico de suas atuações para comunicar o seu código dramatúrgico, calcado na metamorfização do ator/atriz e nas relações dos animais que habitam a floresta. Assim, onças, jacaré, bicho-preguiça, sucuri, tamanduá, boto cor-de-rosa, entre outros animais são apresentados ao público por intermédio do corpo metamorfo dos atores e da atriz, em um visível trabalho de pesquisa, imersão e preparação corporal intensa com direção de movimento assinada pela coreógrafa Carlota Albuquerque.
Em breves esquetes que não possuem linearidade narrativa, temos a apresentação dos animais em “atos” que os introduzem ao público, por meio de imagens e movimentos corporais característicos de cada animal. Além dessas apresentações, há costuras discursivas que permeiam - de maneira ora literal, ora metafórica - a obra a fim de tensionar os espaços que homem e natureza ocupam no Brasil e no mundo contemporâneo. Neste sentido, temos um emaranhado de sons (a trilha sonora assinada por Álvaro RosaCosta intensifica a atmosfera proposta pela encenação, como se estivéssemos na floresta, de fato, por meio da cena sonora criada pelo artista), luzes (igualmente atmosférica, a iluminação de Ricardo Vivian ingere significados múltiplos do discurso cênico por um lado, e sublinha a ação teatral, por outro) e apelos visuais que comunicam-se entre si e dialogam por diferentes vias com o espectador, mesmo que tudo esteja teatralmente delineado em cada quadro apresentado.
O apelo visual, a propósito, é um grande mérito em Amazônia. Este é o eixo de toda a ação proposta no palco. Plasticamente falando, é um trabalho que se sustenta em distintas formas de utilização do espaço, por meio das diferentes relações entre os atores e a atriz e os diversos elementos utilizados na cena - sobretudo os bonecos e objetos criados por Élcio Rossini, que ajudam a conduzir narrativamente o espetáculo e tornam-se um elemento primordial desta plasticidade. É interessante observar, neste sentido, que a ausência de diálogos é uma boa escolha na medida em que a potência do trabalho é evocada pela sensorialidade imagética arquitetada em cena acerca da Amazônia brasileira. Igualmente interessante é perceber que essa conjuração possibilita uma série de interpretações das crianças que, mesmo díspares, caminham para um mesmo fim: a urgência em olhar, debater e preservar nossos ecossistemas.
Por este caminho, o teor pedagógico do espetáculo não subtrai uma característica bastante presente nas montagens do Projeto Gompa (a exemplo de trabalhos como Chapeuzinho Vermelho e Um inimigo na casa de bonecas): a abertura de discussões densas com o seu público sem, contudo, abrir mão de uma comunicação direta, bem como de suas investigações artísticas e de uma identidade própria que se reafirma a cada criação. Muitas vezes, observamos em montagens contemporâneas discursos políticos introjetados no trabalho sem uma relação orgânica com a trama, a escritura dramática ou a dramaturgia, estando ali apenas para se fazer afirmar uma posição. Mas este não é o caso de Amazônia. E, presenciar um trabalho destinado para crianças no qual o político é tão bem diluído na cena, mostra que é possível aliar realidade e criatividade narrativa em uma montagem que condense uma estrutura para além do que já está dado no âmbito do real.
Um exemplo disso é a cena ápice do espetáculo, onde o fogo consome a floresta e os animais, afugentados, debandam em retirada. Neste momento específico, sabemos o que está em xeque: a aniquilação não apenas de nossas florestas e de nossa biodiversidade, mas de nosso próprio país enquanto nação - e sabemos disso porque a imagem, ainda que sendo um recorte, evoca fatos, discursos, representações, reportagens e questões cotidianas que nos são muito próximas. Essa proximidade, todavia, não impede que o espectador se emocione profundamente diante do que vê. Não apenas pela imagem posterior a esta cena - representativa da nossa resiliência e do constante renascimento da vida diante de sua eterna subtração - mas porque há um compartilhamento de ideias profundas entre quem está em cena e aqueles que os assistem.
Ao fim da apresentação que assisti, abriu-se espaço para o público - em sua maioria composto por crianças - falar. Houveram muitas falas entusiasmadas, e uma delas, particularmente, me chamou a atenção. Uma menina, de aproximadamente 9 anos, disse que havia “gostado muito de todas as partes da peça, porque todas as partes representam muitas coisas”. Eu não poderia concordar mais com essa criança. Trata-se de um trabalho que, sem dúvida, representa muitas coisas. Mas, mais do que isso, é um trabalho que tem consciência de que aquilo que representa é resultado de uma criação artística necessária e desafiadora. Nem sempre é fácil desafiar-se, sobretudo tratando-se de um campo como o teatro infanto-juvenil, tão marcado por uma experiência solidificada daquilo que “funciona” na relação espetáculo/espectador. Porém, Amazônia mostra que é possível aventurar-se por outras propostas e possuir relevância naquilo que se faz.
Thiago Silva é dramaturgo, ator, diretor teatral e pesquisador em Artes Cênicas. Graduado em História e Mestre em Processos e Manifestações Culturais pela Universidade Feevale, onde pesquisou as relações entre História e Teatro. Bacharel em Direção Teatral pelo Departamento de Arte Dramática da UFRGS, onde foi bolsista de pesquisa em Escrita Dramatúrgica. Membro fundador e artista pesquisador no Coletivo Nômade de Teatro e Pesquisa Cênica de Porto Alegre (RS).
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Encenação: Camila Bauer
Direção de Movimento: Carlota Albuquerque
Elenco: Fabiane Severo, Guilherme Ferrêra e Henrique Gonçalves
Composição e Cena Sonora: Álvaro RosaCosta
Preparação Musical, voz e piano: Simone Rasslan
Iluminação: Ricardo Vivian
Cenografia e objetos: Élcio Rossini
Criação de onças: Rossana Della Costa
Identidade Visual: Luiza Hickmann
Assessoria de Imprensa: Léo Sant´Anna
Redes Sociais: Pedro Bertoldi
Fotos: Adriana Marchiori
Gravação em Vídeo: Guilherme Ferrêra e Rodrigo Waschburger
Músicas: Oratório (Álvaro RosaCosta e Ronald Augusto) – Nheengatu (Álvaro RosaCosta, Leandro Maia e Simone Rasslan)
Apoio: Cia. de Dança Terpsi, Destro – Manejo e Comércio de Árvores, Ekobio – Consultoria Ambiental e SESC-RS
Financiamento: SEDAC RS – Pró-Cultura RS FAC – Fundo de Apoio à Cultura
Produção: Guilherme Ferreira e Letícia Vieira – Primeira Fila Produções
Produção e Realização: Projeto Gompa.