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Um homem luta com sua memória, com sua falta de sono ou incapacidade de dormir, responde perguntas que não quer responder, mitiga as respostas como se atuasse num interrogatório onde precisa mentir. A luta com as sombras que avançam pelo espaço da cena, mas principalmente, com as que avançam pelo espaço invisível da memória torna-se cada vez mais violenta. Essa violência descortina-se numa personagem, Sombras, que personifica a sensação etérea de uma mulher que em meio ao silêncio sigiloso do que o homem tenta esconder, revela-se.
Não é uma mulher que fala, que escancara sua auto-nomenclatura, sua descrição, sua metáfora e suas consonâncias. É um dia, um lugar, uma classe, um gênero, um grau de instrução, uma profissão, uma propriedade, um contexto, uma probabilidade e uma estatística que tornam-se carne no discurso das Sombras. A Mulher Arrastada retratada na dramaturgia poética e contundente do gaúcho Diones Camargo- recentemente publicada pela Editora Cobogó - é um conjunto de sombras vociferantes em luta contra o esquecimento e a impunidade.
Cada parte do corpo dessa mulher conta uma história, nos fornece um dado, uma visão de mundo e um possível enredo. Quando a personagem se auto-descreve aos golpes, atingindo várias partes do corpo, essas auto-descrições aludem ao casamento e à maternidade, à pele e à sentençaa embutida na cor dessa mesma pele. Não parece uma única pessoa, com nome e sobrenome a quem o texto alude, mas toda uma população, todo um contexto social que se ressignifica e personifica nesse desenho que consegue abarcar tantas mulheres com perspectivas semelhantes.
O homem, a personagem no afã de negar sua memória, tenta inventar fatos que não o incriminem e que talvez facilitem o seu sono, nega o ocorrido ainda não narrado de que o acusam. O suspense dessa negação, a dúvida sobre o que de fato aconteceu não apenas funciona como mote para o desenrolar de uma trama revelada ou sugerida gota a gota, mas remete a dúvida, ao inconcluso que permanece em todas as negativas, em todas as justificativas mirabolantes, em todas as mentiras aviltantes que se tornaram comuns quando policiais assassinos tentam se justificar pela situação ou pelo esquecimento.
O homem continua lutando com sua memória. A imagem da gota de água que cai sobre o coturno como subterfúgio para apagar uma lembrança que não pode eclodir, como em câmera lenta nas memórias da personagem que continua sendo interrogada, transforma-se em gotas de sangue e sêmen que escondem violências silenciadas.
Nesse momento do texto, quando fica evidente a tentativa de encobrir os fatos, a personagem Sombras retorna com menções às partes do corpo da mulher, que se antes remetiam às contingências de sua vida, agora narram tiros que a perfuram. A imagem usada por Diones Camargo para evocar o sangramento é avassaladora, transbordante de violência metafórica: “estou vertendo sangue igual a um saco de leite furado”. A narrativa poética usada pelo autor para descrever o caso real do assassinato de Claudia Silva Ferreira por policiais em 2014, na cidade do Rio de Janeiro, toma formas mais abruptas, mais cruas na descrição da brutalidade aterradora de policiais que jogam a mulher baleada no camburão e a deixam cair do veículo em movimento numa desabalada tentativa de esconder a incoerência criminosa e absurda de seus atos.
A mulher, a mãe, a esposa, a auxiliar de enfermagem que havia saído de casa para comprar pão, baleada inadvertidamente, socada dentro de um veículo e arrastada no asfalto por centenas de metros, ganha na pulsão narrativa do autor uma potência de metáfora. As carnes e os ossos roídos pelo asfalto no caminho do hospital, a desfiguração do corpo, da face, da dignidade humana como um todo, ganham um tônus de grito e indignação na força dos discursos da personagem Sombras, que personifica e alude à personagem real.
O texto, construído a partir de um jogo de perguntas e respostas de um interrogatório, e das descrições em versos brancos, em fragmentos poéticos da personagem Sombras, estabelece um conjunto de narrativas dissonantes, a do policial que tenta negar ou esconder seus atos criminosos revelados em rede nacional, e a mulher negra, assassinada covardemente, arrastada por centenas de metros, condenada ao esquecimento e à impunidade de seus assassinos. Um esquecimento, uma invisibilidade que o texto de Diones Camargo tenta aplacar, denunciar, romper o silêncio da notícia que já não é mais manchete.
O homem, a evocação do policial assassino, luta apenas com sua memória, não com sua consciência. “Quem se importa?”, ele pergunta quando questionado de que o caso chamou atenção demais. Quantos outros casos não chamaram atenção o suficiente para serem retratados em textos teatrais, espetáculos e narrativas cinematográficas, eu me pergunto. “Quem se importa?”, pergunta o homem a quem mergulha nos versos dramatúrgicos do texto A mulher arrastada, de Diones Camargo. “Quem se importa?”, pergunta o homem ao público que compartilha o instante de sublimação e denúncia do espetáculo homônimo dirigido por Adriane Mottola, com atuação de Celina Alcântara e Pedro Nambuco. Apenas o público e a justiça poderão responder.
Foto: Sabrina Marthendal
Afonso Nilson de Souza é dramaturgo e crítico teatral, Doutor em Teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), autor de O ator impuro (Proscênio Editora, 2020).
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A Mulher Arrastada, de Diones Camargo
Editora Cobogó, Rio de Janeiro, 2021.
62 páginas