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Chegamos em setembro de 2021 com ameaças de golpe e ataques à democracia por parte de um governo investigado por envolvimento com milícias e uma ala das forças armadas que apoia esse governo. Em meio a isso, uma parcela embrutecida da população enaltece a ditadura militar, que há bem pouco tempo torturava e assassinava indiscriminadamente.
Por isso, acredito ser conveniente abordar um texto teatral que fala de sobre o exército e seu patrono, o Duque de Caxias, de um modo, digamos, bastante incisivo e revelador: o texto dramatúrgico Caras-Pretas, do escritor e encenador natural de São Luís, Igor Nascimento.
Caras-Pretas, publicado pela Editora Resistência Cultural, em 2015, narra os incidentes e conflitos de uma das maiores revoltas populares do Brasil-Império, a Balaiada (1838-1841). O nome do conflito se deve a atuação de um dos líderes da revolta, Manuel Francisco dos Anjos Ferreira, conhecido como Manuel Balaio, que após ter sua filha estuprada por policiais, sem que houvesse qualquer punição aos oficiais estupradores, assumiu o comando dos revoltosos.
Constituído de cinco ciclos temáticos, divididos em 18 fragmentos, que configuram-se como cenas ou quadros para encenação, o texto de Igor Nascimento oscila entre solilóquios, diálogos ágeis e cômicos e, um repente, que utiliza a comicidade mordaz do gênero para ridicularizar a justificativa militar para intervenção no conflito, estabelecendo em verso e rima as verdadeira função das forças armadas ao longo da história do Brasil: defender os interesses dos governantes, não o estado e não o povo.
Usar repentistas como recurso épico para descrever uma batalha campal é uma solução sintética para evocar um conflito sangrento, assinala identidade cultural para o conflito eminentemente nordestino que, se insurgindo contra medidas descabidas de um governo opressor, acaba por ser aniquilado pela força despótica das armas da mesma maneira que os conflitos de Canudos (1896-1897), Farrapos (1835-1845) e o Contestado (1912-1916).
É notória a capacidade do texto em retratar a violência militar de maneira poética, mais inteligente e reflexiva do que os pastiches repletos de sangue falso que o cinema insufla nos streamings, e que contribuem para criar mitos perigosos como o poder das armas para defesa pessoal, ou mesmo a mistificação da polícia e do soldado como heróis, quando em não raras ocasiões eles são agentes genocidas de políticas de extermínio.
Nesse sentido, quando o dramaturgo retrata o Marechal Luís Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias, patrono do exército brasileiro, como um genocida impiedoso que levou fama de pacificador, faz justiça a fatos históricos deixados em segundo plano em prol da honra ostentada pelas forças armadas, quando enaltecem a covarde vitória do Brasil e seus aliados na Guerra do Paraguai, ou seus feitos sanguinários em dissolver revoltas populares chacinando dezenas de milhares de pessoas, como na Balaiada.
Uma série de recursos promovem a oscilação entre o histórico e o ficcional no texto. O universo narrativo que se constrói com enfoque na evocação do conflito, embora presuma continuidade histórica, é alterado em prol do surreal ou do implausível. Exemplos marcantes disso são os diálogos do Porco (um delator) com os oficiais do exército, ou o fragmento do enforcamento do personagem Cosme, onde em seus últimos segundos de oxigênio, já pendurado pelo pescoço na forca, dialoga longamente com seu carrasco justificando seus atos e mantendo o desafio ao Duque de Caxias.
Engenhoso, ágil e sugerindo a estupidez traiçoeira dos cidadãos que traem seus vizinhos em prol de vantagens decorrentes da intervenção militar, o texto de Igor Nascimento prima pela ironia, pelo cômico e pela ridicularização de forças armadas que se associam à exploração criminosa de populações assoladas por governos corruptos e autoritários.
Percebemos a atualidade do texto de Igor Nascimento, quando colocado em perspectiva aos atos que visam abalar o contexto democrático em defesa de um governo que incentiva o caos institucional em manifestações notadamente associadas ao fascismo e, criminosamente, apoiadas por parte das forças de segurança. E essa turba ignóbil, do mesmo modo que a massa que elegeu o desgoverno que os insufla, não são inocentes em seu suspiro pela ascensão militar, são cúmplices dos crimes que defendem e do caos que incentivam.
Se em Caras-Pretas a população se revolta perante a manutenção de uma administração pública corrupta, ao alistamento forçado e às violências de uma polícia que se comporta como milícia, inversamente, nos atos anti-democráticos que envergonham o país neste 07 de setembro, iludidos por notícias falsas e o fantasma do comunismo, a população sai em defesa de uma controversa, e muitas vezes criminosa, administração pública e, conta como apoio de uma parcela das forças armadas que, mais uma vez, ameaça as instituições democráticas em prol dos próprios interesses. Como diz o jargão popular, o mundo não dá voltas, capota.
Afonso Nilson de Souza é dramaturgo e crítico teatral, Doutor em Teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), autor de O ator impuro (Proscênio Editora, 2020).
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Caras-Pretas, de Igor Nascimento
Editora Resistência Cultural, São Luís, 2015.
Ilustrações de Waldeir Brito
128 páginas