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Começo a escrever este texto no dia 25/05/2021, exatamente 1 ano após o assassinato de George Floyd em Mineápolis, nos Estados Unidos. Há exatos 12 meses atrás, Derek Chauvin, um policial branco, pressionava o pescoço de Floyd, sufocando-o por longos 9 minutos e 27 segundos, enquanto a vítima agonizava dizendo que não conseguia respirar. A polícia que estava no local alegou que o ex-segurança negro teria tentado pagar uma conta com uma nota falsa de 20 dólares, causando tumulto em uma mercearia próxima ao local em que foi morto. O desenrolar dos fatos, entretanto, mostra que George Floyd não manifestou qualquer forma de resistência à abordagem policial, tão pouco era uma ameaça pública, como seus detratores- na cena do crime e fora dela- afirmaram. Não demorou, portanto, para que o mundo soubesse exatamente do que se tratava o episódio: racismo.
Não obstante, o acontecimento deflagrou, no meio de uma pandemia, uma série de protestos contra o racismo norte-americano e a violência policial que lhe é tão intrínseca, em uma das manifestações sociais e políticas mais significativas neste início de século. Hoje, 365 dias depois da morte de George Floyd, observamos que este movimento das ruas gerou consequências importantes, como a condenação de Derek Chauvin e dos demais policiais envolvidos no caso, um intenso debate nos Estados Unidos sobre ações antirracistas e reforma policial - que recentemente tem sido endossado publicamente pela própria família de Floyd - e os próprios rumos das eleições de 2020 no país. Todavia, todo este movimento não apaga o fato de que, nos últimos 12 meses, as práticas de cunho racista não cederam e, assim como Floyd, vários outros corpos negros caíram. E não apenas em solo norte-americano.
No Brasil, não faltam vozes, públicas e privadas, para apontar o nosso “racismo brando”. Por aqui, nada é suficientemente grave. De acordo com os defensores de nossa democracia racial, somos um país tolerante, pacífico e em perfeita harmonia social, no qual todos os grupos, classes e “raças” vivem em uma nítida sintonia cotidiana, sem atritos evidentes. Para os simpatizantes dessa tese, o racismo é a exceção. Existem racistas, claro. Mas, o brasileiro, no geral, não é. Ou seja: o racismo é sempre um problema dos outros, nunca nosso. Além disso, sendo colocado em uma lógica individualista, o racismo não é enfrentado como um problema estrutural e estruturante, que atravessa e molda todas as relações. Pelo contrário: ele é ignorado, minimizado e silenciado, gerando desigualdades que se reproduzem com frequência e perpetuam-se ao longo do tempo e nos diferentes espaços de sociabilidade.
A Última Negra, espetáculo virtual do Coletivo Projeto Gompa, de Porto Alegre (RS), nos convida a pensar as marcas do racismo estrutural em suas diversas manifestações políticas e socioculturais. A dramaturgia de Pedro Bertoldi denuncia as diferentes formas pelas quais este racismo engendra perspectivas societárias, práticas e discursos de grupos e sujeitos distintos, dando ênfase, muitas vezes, para violências cotidianas que perpassam os corpos negros diariamente sem que discutamos isso com a seriedade que deveríamos. O texto, pensado e construído por um artista negro e que começou a ser escrito em 2019, dentro de uma disciplina do Departamento de Arte Dramática da UFRGS, foi tomando, segundo o próprio autor, novos contornos com o passar do tempo, devido aos constantes episódios racistas que presenciamos nos últimos meses em diferentes lugares e, especialmente, no Brasil.
Neste sentido, o espetáculo virtual já inicia com provocações na tela, onde frases como “Brasil, qual a tua idade?”, “Não estamos seguros” e “Uma pátria de ouvintes” mesclam-se com a voz em off de um ator ao fundo das imagens que apresentam-se diante de nossos olhos, nos convidando a refletir, de imediato, sobre tudo o que será dito ao longo do trabalho. Veementes e permeando a nossa consciência como um todo, as frases fazem-nos pensar sobre as instâncias de nosso próprio entendimento acerca da História e das histórias que nos circundam, sobre aquilo que sabemos e aquilo que julgamos saber. Qual a idade do Brasil, afinal? De onde estamos falando, olhando e construindo nossas respostas para esta pergunta? A idade de um país é a mesma para quem nele esteve desde os seus primórdios, para quem chegou em caravelas e para quem nele veio através de correntes, sequestro e porões? Parafraseando o antropólogo Roberto DaMatta, o que faz o brasil, Brasil?
Atravessado por estes questionamentos, o espectador é alimentado por uma proposta dramatúrgica que não esconde o enredamento de suas posições. Entre as falas projetadas pelo ator nesta cena inicial, está a inquisitiva “Eu não consigo respirar, e vocês?”, obrigando-nos a assumir o lugar de onde assistimos cada imagem e de onde ouvimos cada palavra dita pelas personagens. Não à toa, a figura de George Floyd como referencial primeiro no discurso projetado pelo ator carrega uma espécie de metáfora social intermitente, como um arco dramático errante entre o que se é e o que as estruturas nos tornam. Floyd tornou-se um símbolo da impossibilidade de se perceber - e de ler a realidade - para além do estrutural: estamos todos atrelados a isso e todos assumimos um lugar e uma posição nesse mundo segregado que exclui, silencia e violenta. Cabe saber que lugar é esse.
Nesta direção, as escolhas de encenação concernentes à constituição do espetáculo virtual trafegam em uma estética híbrida que, ao mesclar elementos do teatro e do audiovisual, investiga na própria formatação da cena os enredamentos dramatúrgicos propostos. Assim, apesar de aderir muito da linguagem cinematográfica, percebe-se que A Última Negra joga com aspectos do campo teatral para constituir suas reflexões e abordagens do assunto em evidência, seja no jogo do elenco, seja na sua montagem estrutural de natureza cênica. Com o advento de uma narrativa entrecortada, a utilização de recursos polifônicos e a alternância do diálogo e da narração na edição final, por exemplo, por vezes, parecemos estar diante de uma proposta muito próxima às poéticas teatrais contemporâneas na tela. Trata-se de uma investigação que, nitidamente, dialoga com o Teatro em suas escolhas acerca de como fazer ecoar aquilo que se quer denunciar.
Essa máxima também pode ser apreendida nas várias reportagens que vão surgindo na composição visual da cena, escancarando o racismo da sociedade ao mesmo tempo em que feitos importantes da comunidade negra aparecem simultaneamente a esta acusação. Há, portanto, uma complexidade em cada proposição da dramaturgia de Pedro Bertoldi, bem como na direção de Silvana Rodrigues e Camila Bauer, diretoras responsáveis pela organização dessas ideias na tela. Tudo o que observamos nos diz que, se o corpo negro está envolto em um racismo estrutural inegável, também é ele o responsável por grandes conquistas na História da humanidade. Pois, se precisamos falar desta vergonha histórica e dela não se pode esquecer, é preciso dizer também que a historicidade negra não se resume ao escárnio e à escravidão imposta pelo branco. Existe muito mais do que isso.
Essa afirmativa mostra-se de maneira muito sensível durante todo o trabalho, sobretudo na relação do pai, interpretado por Álvaro RosaCosta, com a filha Dandara, protagonista da história e interpretada de maneira extremamente cuidadosa e potente pela atriz Hayline Vitória, que também assina a produção do espetáculo. O mote da história, inclusive, reside nesta relação de cuidado e consciência de si que inscreve-se na ordem da resistência, delineada nos ensinamentos passados de pai para filha. Em um mundo tomado pelo ódio e que está ruindo aceleradamente, onde negros estão sendo perseguidos e extintos, o pai de Dandara encontra maneiras de proteger a filha, sendo a principal delas o conhecimento acerca de quem são e do lugar que ocupam - não como forma de lamento, mas como um vetor de luta e sobrevivência. A sabedoria do pai, deste modo, é o elo que liga Dandara ao seu passado e aos seus bens culturais ancestrais, quando ela acorda cem anos após a extinção completa da população negra em seu país, transformando-se em um “artefato” raro que, não apenas é objeto de estudo científico, como também um campo de disputas políticas e discursivas neste cenário futurista.
Assim, ao ser descongelada cem anos após a completa extinção de pessoas negras, Dandara busca por respostas sobre o que aconteceu e o que se dará a partir de então. Um dos momentos mais significativos do espetáculo virtual reside, justamente, no embate entre Dandara e a arqueóloga que a estuda, condensando, a partir dos diálogos entre ambas, questões que envolvem a construção dos fatos, das narrativas e dos silêncios que compõem a História. Ao ser questionada por Dandara sobre o fato de existirem ou não vestígios de outros negros iguais a ela, a cientista responde apenas “talvez”. E, ao ser indagada sobre o que sabe acerca de outros negros, responde: “Sabemos que vieram para trabalhar e que por algum motivo foram maltratados. Existe um vazio na História”. Esse vazio, essas distorções e esses silêncios recorrentes apresentam os mecanismos pelos quais o racismo infere na própria construção da historiografia que, não apenas silencia certas histórias em detrimento de outras, mas também apaga a sublevação de vozes que são importantes, embora não lhe interessem. A escrita da História é visivelmente carregada de ideologia, intenção e subjetividade.
O advogado e filósofo Silvio Almeida, em seu livro O que é o Racismo Estrutural, observa que a própria edificação discursiva das noções históricas sobre o Brasil contribuiu para organizar as hierarquias raciais que estruturam a sociedade brasileira. Para o autor, é preciso entender que nossa História e nossas leis foram criadas por pessoas brancas em posições de imenso privilégio. Sendo assim, também criaram-se dispositivos sofisticados para a manutenção do racismo ao longo do tempo - entre eles o silêncio. Em A Última Negra, o silêncio como uma reflexão acerca do racismo apresenta-se nas formas que cada personagem ou situação dispõe de um modus operandi para falar ou calar sobre o “artefato” encontrado. Neste caminho, a dramaturgia se farta de figuras que, embora atreladas a uma realidade aparentemente distópica, representam tipos distintos que ocupam lugares socialmente demarcados na nossa sociedade.
Deste modo, o elenco coadjuvante composto por Fabiane Severo, Fabrício Zavareze, Guilherme Ferrêra e Henrique Gonçalves transitam por esta constituição social de personagens que apresentam diferentes facetas de um racismo estrutural e excludente que se manifesta em frentes distintas, além de tecer uma crítica aos aspectos institucionais dessa exclusão. Assim, seja através dos militares treinados para matar e que dizimam jovens negros em favelas, do político oportunista que usa das maiorias minorizadas - me valendo aqui de um conceito proposto pela historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz - para aumentar seu eleitorado ou do jornalista sensacionalista que se vale do corpo negro apenas para aumentar a audiência e sua própria credibilidade enquanto pessoa pública, observamos um mosaico dramatúrgico de ações racistas - sutis ou não - que se atravessam. E, ao atravessarem-se, se retroalimentam dramaticamente no sentido de mostrar como esta estrutura dialoga de modo sofisticado na direção de segregar e oprimir o outro.
A escolha por transformar Dandara em um “artefato” na dramaturgia, portanto, não é gratuita e obedece um raciocínio que induz uma observação empírica profunda da realidade brasileira, onde negros e negras ainda são objetificados das formas mais diversas possíveis. O corpo de Dandara pertence à ciência, ao Estado, ao jornalismo, menos a ela mesma. A ciência estuda, o Estado mata, o jornalismo fala, mas ninguém escuta o objeto de seu extermínio e de sua enunciação. Há, desse modo, uma desumanização do outro a partir de práticas culturais, institucionais, históricas e interpessoais que endossam a exclusão substancial da população negra. Trata-se de um conjunto de valores, falas, hábitos e situações que promovem, direta ou indiretamente, a segregação e o preconceito racial.
Intelectuais negras como Djamila Ribeiro, Angela Davis e bell hooks nos lembram que não basta não ser racista, é preciso ser antirracista. É preciso entender de onde falamos e o que podemos fazer a partir deste lugar. É preciso buscar ações que se concretizem para além do discurso. O protagonismo negro de A Última Negra revela aspectos de uma ação concreta por meio da arte, mas também o endereçamento de suas questões nos colocam em xeque com a necessidade de movimento - que deve ser feito principalmente por nós, a branquitude - para que a realidade possa ser modificada. Ou seja, A Última Negra é um trabalho necessário e urgente que destaca-se não apenas pela sua qualidade técnica, mas por tudo aquilo que representa.
Thiago Silva é dramaturgo, ator, diretor teatral e pesquisador em Artes Cênicas. Graduado em História e Mestre em Processos e Manifestações Culturais pela Universidade Feevale, onde pesquisou as relações entre História e Teatro. Bacharel em Direção Teatral pelo Departamento de Arte Dramática da UFRGS, onde foi bolsista de pesquisa em Escrita Dramatúrgica. Membro fundador e artista pesquisador no Coletivo Nômade de Teatro e Pesquisa Cênica de Porto Alegre (RS).
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História original e dramaturgia: Pedro Bertoldi
Direção: Silvana Rodrigues e Camila Bauer
Elenco: Hayline Vitória, Álvaro RosaCosta, Fabrício Zavareze, Guilherme Ferrêra, Fabiane Severo, Henrique Gonçalves.
Direção de imagens e edição: Júlio Estevan
Trilha sonora original e edição de som: Álvaro RosaCosta
Orientação de figurino: Fabiane Severo e Guilherme Ferrêra
Designer gráfico: Mitti Mendonça
Fotografia e criação de teasers: Júlio Estevan
Assessoria e produção de conteúdo de mídias: Tainã Rosa
Assessoria de imprensa: Thais Silveira
Produção de vídeo: Júlio Estevan
Produção musical: Álvaro RosaCosta
Produção administrativa/cultural: Hayline Vitória
Produção executiva: Silvia Duarte
Realização: Projeto GOMPA
Financiamento: Pró Cultura RS - Lei de incentivo e Fundo, Secretaria da Cultura - Governo do Estado do Rio Grande do Sul
Apoio: EntreAtos