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“Agora tu sabes quem sou? (...) Quisera eu não ter nascido na terra das mulheres virtuosas. Ou pelo menos não ser a regra, e sim a exceção.”
PENÉLOPE – As mulheres de Odisseu - Eduardo Loureiro Jr.
“É disso que eu me vingo. (Um dia, eu me concedi todos os direitos)” LUÍS – Apenas o fim do mundo - Jean-Luc Lagarce
“(...) eu viajei por poucos dias ou por muitos (uma volta ao mundo) e nunca mais voltei eu li a minha sorte nas minhas mãos eu escrevi minha sorte” Ela – Penélope - Ligia Souza
Hoje está tudo diferente. Um ano se despedindo e quase nem aconteceu, um fazer teatral tão modificado, mulheres que não fazem o que esperam de mulheres. A La Letre realizou uma web-peça em 2020 sobre isso tudo, dirigida por Nadja Naira, dramaturgia de Ligia Souza, com Uyara Torrente e Pablito Kucarz no elenco. E eu desejo que Penélope se torne algo assim como uma nova ideia sobre isso tudo. Uma ideia de mulher ressignificada e recriada: a mulher por mulheres. Assim como foi necessário um novo paradigma de encenação – de teatralidade, performance e teatro. Assim como precisamos redescobrir e reinventar nossas relações humanas. Bem diferentes.
O diferente, ao longo desse ano, foi ter, de um lado, artistas e performers em suas respectivas casas, de outro, o público, igualmente sem sair de casa, e como transformar esse encontro em um acontecimento teatral se revelou um desafio complexo. Um encontro sem contato, fisicalidade, materialidade e corpos, um acontecimento sem a presentificação do lugar e do estar em comum, ou seja, sem o que transforma o teatro em teatro. O fazer teatral, contudo, pode ser bem mais do que isso.
Já no fim da década de 1990, Denis Guénoum (2004, p. 157-158) falava sobre a necessidade de repensar, retomar, relançar o teatro e não aceitar a sua extinção. Dentre algumas reflexões, estava a questão da profissionalidade e de suas relações com o “amadorismo” e como o teatro deve “se abrir aos fluxos da vida que continua estranha a ele”. Para o teórico francês, “O teatro quer o não-teatro que o compreenda. Não para tirar dele uma mais-valia estética para uso dos gourmets: para que o teatro abra sua mostração aos leigos e ao tumulto. Faz falta o longínquo, o esparso, o estreito. O estranho reconfortante e o familiar vertiginoso.”
Penélope efetiva caminhos no meio dessa navegação pelo “não-teatro”, provocando esse estranho reconfortante, algo de familiar vertiginoso e, sem dúvida, esgarçando tramas ainda por serem alinhavadas em redes ainda não lançadas. Todo e tanto mar ainda é para ser navegado. Guénoum não vislumbrou 2020 quando pensava em “não-teatro” e na necessidade de se retomá-lo, todavia já falava em singularizar processos, além de trazer à cena quem dela estava excluído. Não como temática para representação artística, mas como criar modos de provocar rupturas na estrutura do teatro e nas “efetividades cênicas”, para se abrir ao jogo dos outros, “e acolher, no mais extremo rigor de trabalho e de composição, procedimentos de travessia do real vivo.”
E como deixar o real vivo atravessar algo tão fragmentado, esse mar desconhecido? Justamente, aproveitando-se desse real e transformando-o, de algum modo, em materialidade, performatividade e teatralidade. Levando o real para a cena. E, por que não, jogando com ele. Com ou sem teatro. Com mais ou menos graus de representação e apresentação. Expondo os processos, evidenciando o real que é possível de ser trabalhado e realizado nesse período. Deixando irromper as camadas das linguagens e as peles das palavras – arrancadas e reparadas.
No comando dessa aventura real online não temos um herói épico, um flâneur moderno ou um filho pródigo retornando, quem está navegando é uma mulher que diz sim – aviso aos navegantes: ela vai continuar em alto-mar, jornada adentro, em sua “guerra própria”, por sua vida e liberdade. Mas ela não está no teatro. Nós não estamos na plateia. É uma mulher no seu quarto, com seu celular, com seu drink ou café, com sua pele tatuada, seus piercings, sua voz de comando e seus olhos de provocação. Seus olhos de mar e tudo o que nele acontece: maré calma, maré alta, local perigoso, ondas rebentando, conchas esquecidas na areia, impróprio para banho, bandeira verde, deu praia, tsunamis, maresia – marés vivas e marés mortas.
Mas quem é Penélope? Antes de alcançar a dramaturgia de Ligia Souza e sua resposta às questões envolvendo a mulher que resolve partir em vez de ficar e esperar, busquei em uma genealogia de Penélopes a importância desse ato inaugural que reposiciona e repensa essa linhagem de mulheres e suas ações.
Penélope, a de Homero, é descrita como filha de Icário e de Periboea, esposa de Odisseu (Ulisses, na mitologia latina), mãe de Telêmaco, prima de Helena. É a esposa que espera seu amado retornar da Guerra de Troia, apesar de ser cortejada por inúmeros pretendes. Sem saber se o marido estava vivo ou morto, Penélope condiciona um futuro casamento ao término de um manto que tecia a Laertes; como sabemos, ela desmanchava à noite o trabalho realizado de dia. Odisseu volta à Ítaca depois de vinte anos de aventuras. Penélope é aquela que cuida, aguarda e precisa driblar a sorte, a sociedade, os homens e os deuses, para cumprir o seu destino: filha, mãe e a fiel mulher de Ulisses.
A Penélope de James Joyce se chama Marion Bloom, mais conhecida por Molly, a esposa de Leopold Bloom, o herói moderno de Ulysses. Molly revela no último capítulo, através de um monólogo interior, uma torrente de pensamentos associados sem lógica ou causalidade, nessa técnica pela qual Joyce sagrou-se, o fluxo de consciência, também utilizado por Virginia Woolf e autores(as) modernistas. É madrugada e a personagem reflete e relembra episódios do passado, sua infância, os pretendentes da juventude, pessoas que cruzaram sua vida, sua carreira efêmera de cantora, até o momento em que Bloom a pediu em casamento e como foi a sua resposta: “(...) ele perguntou-me se eu queria sim dizer sim minha flor da montanha e primeiro enlacei-o com meus braços sim e puxei-o para mim para que pudesse sentir meus seios só perfume sim e seu coração disparando como louco e sim eu disse sim eu quero Sim.”
Por fim, a Penélope escrita por Eduardo Loureiro Jr. em As mulheres de Odisseu: A Ilíada e a Odisseia recontadas pelas personagens femininas (2011). Uma ideia interessante de mudança de perspectiva, porém, realizada por quem ainda se mantém como autoridade no campo da linguagem e da literatura, a autoria masculina. Uma Penélope com voz própria, com sentimentos, dúvidas, dificuldades em aceitar a partida e o retorno de Odisseu, que manifesta seus ciúmes, sua raiva, seus desejos, mas também seu amor incondicional e sua obediência inquestionada: “Não, meu amado, não quero dizer que me entregaria a eles. Eu jamais faria isso. Sim, fui eu que propus o desafio do arco. Não, eu não sabia que tu eras tu. Sim, eu iria me casar com quem vencesse o desafio. Não, eu jamais seria infiel a ti”.
Não é mera coincidência que essas três Penélopes foram escritas por autores homens. Sabemos o quanto a especificidade da literatura, da arte, da ficção é movida pela capacidade de alteridade, de empatia, de se colocar na pele de outra pessoa (concreta, figurada, alegórica), de se imaginar e se permitir. Mas também sabemos os limites da verossimilhança e como, cada vez mais, estão sendo questionadas as formas e os métodos pelos quais a ficção se construiu. Onde estão as vozes que não aparecem desde Homero, desde Joyce? Sempre estiveram em algum canto não reconhecido e divulgado, desde Homero, desde Joyce. Agora, essas vozes ocupam seus devidos lugares, desde Safo, Virginia, Sheila e Ligia.
Sheila Callaghan adaptou Ulysses, de Joyce, em 2006, criando uma dramaturgia para a Broadway cujos heróis-heroínas eram, na verdade, as protagonistas Samantha Blossom (Leopold Blomm) e Jewel Jupiter (Stephen Dedalus). No caso da Penélope, de Ligia Souza, no entanto, não foi simplesmente uma mudança de perspectiva ou de alçar uma personagem mulher ao protagonismo, foi, sobretudo, a escolha de como apresentar Ela, a linguagem utilizada para dar conta da complexidade marítima desta mulher, a forma com que Ela se relaciona com Ele, com o mundo, consigo mesma, com suas descobertas e suas renúncias, com seus sentimentos cíclicos, com o amor, com a vida e a morte. A mulher de Penélope é anônima e pluralmente nominada Ela, indicando esse perfeito oxímoro de quem pode não ser única e nem muitas, ou ser uma e todas.
Ligia encontra um caminho profícuo quando constrói a premissa do enredo e revela as questões conflituosas entre os personagens como uma alternativa não esperada. Seria mais fácil, talvez cômodo, que Ela e Ele fossem um casal colocando sua relação em xeque, com todas as (comuns) possibilidades dessa situação narrativa. Ela volta de viagem, Ele espera. Ela tem histórias para contar de quem viveu, Ele tem amarguras e ressentimentos de quem ficou. Ela tem mais dúvidas do que certezas, Ele tem mais cobranças do que conciliações. Ambos buscam, cada um(a) com suas razões, a compreensão do outro(a), quiçá, um entendimento, um apaziguamento de seus corações fraternos. De suas condições – e sentimentos – de irmãos. Só o tempo dirá. A vida que os coloca frente a frente. Em telas.
O acontecimento de quem parte, como fuga ou plano, e de quem fica, como resignação ou escolha, movimenta as engrenagens narrativas e os arranjos familiares. Ligia desloca o núcleo de uma família socialmente normativa, um casal heterossexual e seu filho, na origem do mito de Odisseu, para um núcleo entre irmãos e uma família dissolvida. E aqui também temos outro desvio, quem provoca a ação e executa o movimento de sair e retornar não é o irmão, mas a irmã. Se na Parábola do Filho Pródigo, o filho mais novo se arrepende e retorna para o pai e ao seio da família – assim como faz André, em Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar –, Ela não retorna porque precisa se encontrar e reviver nas graças da família, Ela se achou quando resolveu partir e se perder no mundo. Ela retorna porque assim decidiu. E não é, para Ela, uma verdade incontestável as mudanças de rotas, os erros, as vacilações, tampouco o retorno.
Tal qual Ela, Luiz (Louis), de Apenas o fim do mundo, de Jean-Luc Lagarce (tradução de Giovana Soar), volta porque tem algo para contar, para dizer à mãe, ao irmão e irmã. Mais do que a inspiração e o diálogo com a peça do autor francês, a correspondência pode ser articulada entre as personagens Ele e Catarina (Catherine), a irmã de Luiz, aquela que ficou. Se Ana, objeto do desejo e do amor de André, é totalmente impedida de falar na novela de Nassar, nas duas peças, está na palavra de quem fica a angústia e a dor de não ir. Um sentimento facilmente pensado como recalque, mas que abrange níveis mais explorados na dramaturgia de Ligia. Luiz, ao contrário d’Ela, não consegue contar porque estava, naquele domingo, na casa da família.
Catarina, a irmã, parece querer mostrar a Luiz o lado bom de quem ficou e se deu bem na vida. Ele, não faz isso. Ele cobra, questiona, indaga e inquire as responsabilidades da irmã que saiu de casa. A irmã que deveria ter ficado, a irmã que deveria ter cuidado da mãe e do pai velhos, a irmã que tinha deveres com a casa materna. A irmã que não fez o que se espera de uma mulher. Não podemos atribuir as palavras e as intenções d’Ele somente ao discurso machista e misógino cultural, social e economicamente construído e difundido em relação ao papel (lugar) da mulher enquanto mãe, filha, esposa e irmã. Tampouco podemos negar a sua importância neste texto.
Destaco as camadas reveladas desse discurso e o quanto o jogo – de linguagem, cênico e semiótico – consegue muito bem articular o pêndulo dos direitos e deveres oscilar ora para o irmão, ora para a irmã, e suas razões e escolhas. Não é fácil estabelecer qual irmão ou irmã vai se responsabilizar pelo cuidado dos pais que envelhecem, adoecem, precisam de vigilância e amor diários. Os pais que morrem – e morrem esperando. A pergunta: “quem nasce para ficar e cuidar e quem nasce para sair e desbravar o mundo?” ecoa durante toda a web-peça. Não falamos apenas de gênero e sexo. Mas muito se diz a cada fala d’Ela e d’Ele. Quem escolhe o quê?
E é nesse ponto que me concentro na exibição online de Penélope, também chamada de experimento cênico para ambiente virtual. O texto de Ligia Souza já estava pronto quando o mundo precisou repensar 2020 e se repensar (menos do que deveria). Destaco, contudo, que a criação da web-peça foi pensada com exclusividade nesse contexto de telas de comunicação e interação. Diferentemente de várias apresentações que pudemos assistir no conforto (para quem pode) de nossas salas, quartos e cozinhas, Penélope não foi adaptada ou recriada ou transformada, foi realizada com esse intuito e para esse formato. O texto, sim, necessitou de ajustes. A escolha da equipe de criação pela utilização do aplicativo Instagram, ao contrário da maior parte que optou por plataformas como Zoom ou You tube, a princípio, poderia significar um engessamento – quase uma moldura pronta para tantas e exaustivas lives assistidas.
O Instagram, do modo como foi utilizado, revelou-se o melhor formato para as potencialidades cênicas e performativas exploradas na web-peça. A divisão da tela em dois quadros – nem sempre proporcionais, nem sempre dois, nem sempre na vertical ou na horizontal – possibilitou o movimento de pêndulo ao qual o jogo cênico provocado pelo texto necessitava e suscitava. Uma gangorra desequilibrada, uma plataforma enguiçada, uma rede jogada ainda fechada. Os quadros se movimentavam sem hierarquia, apesar de revelarem certa hierarquia em momentos de solilóquios, como quando Ela aparecia em destaque e Ele num quadradinho menor no canto inferior ou quando Ele aparecia superior a Ela, como que olhando por cima d’Ela.
Esse enquadramento múltiplo conferiu o tom do jogo teatral e da contracenação que faltou em espetáculos apresentados em telas e dispositivos ao longo do ano. O enquadramento foi, sem dúvida, acrescido com beleza pelo uso da fotografia – termo emprestada do cinema – para me referir à iluminação e à disposição cênica (com licença). Uma luz recortada que possibilitou imagens – vídeo – em preto e branco ampliado com ênfase em tonalidades vermelhas e pela sombra do corpo d’Ela ao final. A luz e o enquadramento, feito pela edição ao vivo das imagens, revelou uma tridimensionalidade que também estava escassa em meio a tanta frontalidade quase obrigatória das telas.
O movimento de se afastar das câmeras possibilitou uma profundidade de campo e visualização dos corpos inteiros da atriz e do ator, em uma amplitude do olhar acostumado, pela tela, mais com aproximações do que com recuos. Nesse vaivém, nós, que presenciamos aquela discussão entre irmãos, aquele jogo de culpa e perdão, de quem abandonou quem, da exposição de como a mãe morreu – quando uma foto de família se aproxima da câmera levada pela mão d’Ele e cobra explicações – e depois o pai não conseguiu mais esperar, e a partilha da casa e dos bens precisa ser feita; enquanto isso, nós ouvimos quietos, mas também como interlocutores para um desabafo e testemunhas da passagem do tempo por aquelas vidas – um ano, dois anos, 10 ou 20 – o tempo passa.
A edição das imagens é feita por Paulo Rosa e colabora decisivamente à dramaturgia de Ligia e à direção de Nadja Naira. Fico imaginando e me perguntando sobre as dificuldades e os desafios da diretora e iluminadora Nadja em criar e arquitetar esse experimento sem poder chegar perto, sem conduzir, sugerir e movimentar os corpos e as presenças de Uyara Torrente e Pablito Kucarz, conforme o texto instiga e as improvisações deveriam acontecer. O que aconteceria em um processo de criação coletiva. Prevaleceram, sobretudo, a experiência e a qualidade multifacetada, técnica e cuidadosa de Nadja em explorar o (des)equilíbrio e o entrosamento / afastamento desses irmãos nas telas.
O real da distância serviu aos propósitos do texto, bem como a arquitetura apurada da luz com a edição de vídeo à teatralidade buscada e alcançada pela diretora, apesar dos recursos parecerem simples. A escolha da música final, na trilha sonora de Álvaro Antonio, remete a uma nostalgia de algo que não é mais possível voltar, reatar ou reconquistar, pois já fora perdido. Uma nostalgia sem uma carga de dor ou sofrimento – ainda que melancólica. Os ruídos da rua, os barulhos intermitentes da realidade, os carros, a sirene, nos levam ao exterior daqueles quartos e da situação dos irmãos. Esses sons nos lembram de mais cotidiano nesse cotidiano interrompido.
Uyara e Pablito conversam em quadros editados sem estarem propriamente enxergando um ao outro, mas, para nós, o efeito é de que Ela e Ele estão frente a frente. A atuação de Pablito expõe as camadas da pele desse irmão, talvez preterido, talvez negligenciado e incomodado, sobretudo, ressentido. No começo, Ele aparece com um drink, um Negroni, um Martini, e aqueles grandes fones de ouvido, outra música nostálgica tocando, uma dança descontraída na cadeira, parece indiferente aos motivos da irmã. Demonstra, ao longo do acerto de contas fraterno, uma indignação transformada em acusação e inquisição. Emociona-se com a foto da mãe, mas segue revoltado com a fuga da irmã. Há espaço, nesta pele e neste corpo, para o perdão e o entendimento?
Uyara concentra no rosto e nos olhos, principalmente, todas as marés da personagem, com a gestualidade de mãos inquietas e de um corpo pronto para fugir, mas que está ali, para falar. É uma cotidianidade nos gestos e nas expressões que se transforma na explosão do último solilóquio como uma legítima descendente de Molly Bloom e de seu fluxo de consciência. Ela pergunta se Ele já viveu um amor, se já viu quem ama morrer, se já resolveu viver por conta própria; Ela fala sobre a sua guerra particular, suas escolhas, acertadas ou não; as escolhas de uma mulher de 35 anos que se sustenta, que vivenciou e experimentou tudo o que podia, desejou, quis e fez – do amor de outra mulher às viagens por lugares longínquos, à dor da renúncia pelo que ficou – pois, isso não lhe foi indiferente, a família, como Ele afirmava. Atriz e personagem imiscuídas em busca da autoafirmação dessa mulher.
Para a personagem Ela não basta a teoria da Jornada da heroína, da autora norte-americana Maureen Murdock em The Heroine’s journey, pois, além da base arquetípica junguiana (Jornada do herói), fundamenta-se em uma estrutura narrativa que tende à linearidade e aos episódios/desafios assim descritos: separação do feminino; identificação com o masculino; estrada de provações; sucesso ilusório; o “não” das mulheres fortes; iniciação e inclinação à Deusa; reconexão com o feminino; cura da divisão mãe/filha; encontro do masculino interior; além da dualidade. Tampouco a personagem é somente uma flâneuse contemporânea, já que o flâneur foi uma figura tipicamente masculina ancorada na modernidade e na sua relação com à cidade. Ela apresenta outra complexidade e outra realidade narrativa.
Por fim, ressalto duas iniciativas da La Lettre. A primeira delas, é a conversa ao final da sessão e a exposição do processo de criação, a revelação de como a edição das imagens é feita ao vivo, de como os ensaios aconteceram e como a trilha entrou na cena. Se antes tínhamos as peças que revelavam o fazer teatral desde o seu começo, a preparação do elenco, os bastidores antes do espetáculo, com esse experimento em ambiente virtual, temos a possibilidade de dialogar sobre o durante, o pós e o que poderemos fazer com isso tudo daqui em diante.
A outra iniciativa fundamental é o selo editorial criado pela produtora La Lettre que já publicou, além da dramaturgia de Ligia Souza, trabalhos da Súbita companhia e textos de dramaturgas e dramaturgos do núcleo de Dramaturgia SESI-PR. Há necessidade de se reforçar a informação sobre a falta de publicação de dramaturgia no Brasil, pois o gênero é relegado pelo mercado editorial e não consta como categoria em diversos certames literários, sendo contemplado quase que exclusivamente em prêmios teatrais.
Termino essas reflexões saboreando uma merecida bebida. Como não costumo beber drink, bebo cerveja. Gostaria de tomar um café, ou melhor, um uísque ou vinho, com Ela, com Ligia, Nadja e Uyara, e conversar. Falar do cotidiano. Falar de arte. Bater aquele papo de mulher. Falar de como prefiro a Penélope que não disse sim ao retorno de Odisseu ou sim ao casamento com Leopold Bloom, mas aquela que diz, hoje, sim; aquela que quer sim todo o dia. Aquela que hoje pode dizer não para muita coisa e sim para a mais importante delas: sim à vida e à liberdade enquanto mulher.
Referências
GUÉNOM, Denis. O teatro é necessário? Tradução: Fátima Saadi. São Paulo: Perspectiva, 2004.
FERNANDES, Sílvia. Teatralidades contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 2010.
JOYCE, James. Ulysses. Transcriação de Haroldo de Campos. 1971. Pdf.
LAGARCE, Jean-Luc. Apenas o fim do mundo. Tradução: Giovana Soar. São Paulo: Aliança Francesa: Consulado Geral da França em São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006.
LOUREIRO JR., Eduardo. As mulheres de Odisseu: A Ilíada e a Odisseia recontadas pelas personagens femininas. Brasília: Ministério da Cultura: Funarte, 2011. E-book.
NASSAR, Raduan. Obra completa. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
Natasha Centenaro é escritora, dramaturga, jornalista, professora e pesquisadora em Letras, mestra em Escrita Criativa e doutora em Teoria da Literatura (PUCRS / CNPq). Coordena a Premissa – Palavra e arte. Autora de duas vezes draMática (EDIPUCRS, 2018).
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Dramaturgia: Ligia Souza
Direção: Nadja Naira
Elenco: Uyara Torrente e Pablito Kucarz
Colaboração: Paulo Rosa e Álvaro Antonio
Produção: Livia Milhomem Sá
Realização: La Lettre
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