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Um projeto atravessado por uma pandemia e que, mesmo assim, continuou firme em seu intuito criativo e afetivo, é um projeto marcado pela coragem de seguir em frente e também por muita resiliência para se reinventar e existir – mesmo diante dos abismos que se avizinham.
De novembro de 2019 – época em que propostas de montagem do texto Wonderland Ave., da autora Sibylle Berg, foram apresentados para a comissão de seleção do Transit – até novembro de 2020, o mundo mudou. E isso não é um jargão: se muitas situações idiossincráticas da nossa sociedade apenas se acentuaram e ficaram mais expostas, o modo como vivemos nossas rotinas e, principalmente, os modos como fazemos e fruímos arte, estão diferentes.
No dia 17 de março de 2020, os grupos e os provocadores foram comunicados oficialmente sobre o cancelamento do 15º Palco Giratório e da suspensão temporária das atividades do Goethe-Institut Porto Alegre, em função da pandemia. Diante desse contexto inesperado, o Projeto Transit 2020 se viu obrigado a convocar os dois grupos selecionados para esta edição e repensar, em conjunto, os formatos de produção, criação e apresentação dos trabalhos.
No dia 22 de maio, uma reunião foi agendada para decidir que rumos o Transit deveria tomar. Até ali, nada estava definido, mas uma certeza já se impunha: a de nos mantermos protegidos e fazermos o teatro do possível. As negociações financeiras, bem como de prazos, foram longas e complicadas, pois nem os grupos e nem as instituições contavam com mudanças de planos tão profundas. Isso tudo somado às mudanças internas que as instituições tiveram que encarar ao longo deste ano tão atípico.
Cabe aqui uma rápida apresentação do diretor que conduz o processo que será focado neste texto: Leandro Silva, 38 anos, nasceu em Canto do Buriti, no interior do Piauí. Em 2012, chegou ao Rio Grande do Sul para participar de duas residências artísticas: a do Edital Bolsa Funarte Interações Estéticas – Residências Artísticas em Pontos de Cultura de 2012, realizada de janeiro a julho de 2013; e, no início do mesmo ano, uma temporada de estudos sobre teatro de sombras com a Cia Teatro Lumbra, em Morro Reuter. Quando terminou as residências, em julho de 2013, nasceu o espetáculo Fuzuê no Sertão Encantado e o Grupo Fuzuê Teatro de Animação.
Desde sua chegada na capital gaúcha, seu interesse estava voltado para a base comunitária, bem como no desejo de se aprimorar em outras vertentes do teatro de animação. Esses dois interesses são, justamente, os pilares do projeto de montagem do espetáculo, no Projeto Transit. A base comunitária estava formada pelas parcerias que envolvia desde os atores, atrizes e técnicos até na forma como trabalhar, preocupado com o bem-estar coletivo, buscando extrair o melhor das potencialidades de cada um. Já o estudo de outras vertentes do teatro de animação foi a gênese do projeto, que previa o uso de tecnologias digitais.
Ainda que, em um primeiro momento, Leandro tenha tentado manter o projeto original e fazer uma filmagem da peça no palco, utilizando as premissas estabelecidas, logo foi necessário assumir que o Transit 2020 estava definitivamente atravessado pela pandemia, e que sua montagem deveria incorporar mais profundamente essa transformação. “A peça Wonderland Ave. de Sibylle Berg nos parece de uma atualidade profética e desconcertante nesse momento”, escreveu o diretor em seu diário de bordo, no dia 20 de março, poucos dias depois de receber a notícia do cancelamento da estreia.
O projeto apresentado por Leandro e escolhido pela comissão de seleção trazia duas frentes principais. A primeira apresentava e discutia o conceito de Teatro de Avatar, criando no palco um “ambiente imersivo”, onde uma das atrizes era vista apenas através de sua imagem projetada – como no “avatar” dos games, da internet, das divindades. “A técnica em si era simples, apesar de muito complicada para sincronizar: telas de 3m x 2,40m, feitas com metalon e tule ilusion, que tanto permitiam uma porosidade quanto a projeção de imagens, e um ator que ocuparia essas telas através de múltiplas projeções mediadas por um computador que permitiria distorcer, modificar, alterar a imagem em tempo real. Tudo feito ao vivo, na presença do espectador”, contou Leandro.
Chamou a atenção também que um artista bonequeiro fizesse uma proposta de manipulação da imagem em tempo real. Lembrando a técnica de peças como Peregrinação (2014), da companhia portuguesa Lafontana Formas Animadas, que utiliza bonecos de caixa em ambiente imersivo, em 3D no qual um palco é transformado em estúdio de cinema e tudo é manipulado perante o “olhar” de câmaras de vídeo. As imagens são recolhidas por um sistema informático que promove o seu tratamento, montagem, mistura, sonorização e inserção de efeitos especiais – tudo em tempo real. O resultado final é projetado em uma tela, ao espectador. Essa técnica de teatro de animação ainda é nova no Brasil, mas está sendo pesquisada por Leandro fora e dentro da academia, tendo defendido recentemente sua dissertação de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRGS, intitulada Teatro de animação e tecnologias: um olhar a partir da interface sobre o trabalho de algumas companhias do Rio Grande do Sul.
O segundo ponto do projeto inicial seria a presença de um Ator Biocibernético, para a elaboração de um corpo atoral modificado e monitorado pelo uso de tecnologias: o ator faria uso de gadgets de monitoramento acoplados ao corpo, que captariam seus movimentos. O corpo captado seria material, então, para um processo de “marionetagem digital”, onde o corpo-boneco seria manipulado por uma equipe, virtualmente e em tempo real, através de programas de computador, simultaneamente à projeção de sua imagem nas telas do cenário. Serviram de inspiração para essa ideia artistas como o britânico Neil Harbisson, que decidiu colocar uma antena em seu crânio para contornar um problema de nascença (ele tem acromatopsia, uma síndrome rara que só o permite enxergar tons de cinza). Ao lado da amiga Moon Ribas, ele fundou, em 2010, a Cyborg Foundation, uma organização para ajudar outras pessoas a se tornarem ciborgues e promover a implantação de tecnologias no corpo – como um estilo de vida e também como movimento artístico. Essas ideias foram deixadas de lado, abrindo espaço para outros conceitos mais conectados com as condições criativas e de produção vivenciadas pela equipe.
Da mesma forma, o universo cyberpunk imaginado por Leandro, com seres marginalizados, distanciados e solitários também se tornou um tanto obsoleto enquanto representação ficcional de um futuro hipotético e distante, tomando forma de vida real – a nossa vida real. Muitos de nós estão em isolamento (apesar de todo afrouxamento sanitário proposto de maneira discutível por alguns governos), experimentando o convívio mediado por tecnologias digitais, ficando muitas vezes à mercê de grandes conglomerados de tecnologia, que fabricam e programam as máquinas e aplicativos que regem as relações entre nós e as outras pessoas, entre nós e o mundo. De certa forma, a distopia do universo ciberpunk se fez evidente no mundo real de 2020.
Um dos resultados dessa mudança de leitura e de estratégica poética é a re-opção do diretor pela utilização, no figurino, de roupas cotidianas, casuais, as mesmas que os atores estão usando em seus confinamentos. E se antes de tudo o espaço da montagem era o palco tecnológico habitado por projeções e interações digitais, o foco agora passou a ser a investigação dos espaços cotidianos de cada integrante do elenco (os cômodos da casa e suas particularidades), entendidos como espaço poético para a materialização do confinamento proposto por Berg. Espaços e habitantes – o quarto, a sala, o ator, a Pessoa – duplicados e reconfigurados também por maquetes e pequenos bonecos (construídos por Silvia Serrano) manipulados diretamente pelo elenco. Apesar de tudo, o teatro de bonecos sempre permaneceu.
Da mesma forma que o processo de criação se alterou de acordo com a realidade pandêmica, também se modificou a forma como nós, críticos-provocadores, nos inserimos e acompanhamos os projetos. Como se aproximar de uma equipe em pleno processo criativo – no qual se viu obrigada a trabalhar com linguagens, plataformas e procedimentos novos e desconhecidos – apenas pelas telas de computador? Como estabelecer vínculos e convivência criativa com um grupo de pessoas que talvez não conheçamos suficientemente de forma presencial, concreta? (lembrando que os ensaios presenciais foram interrompidos logo no início, quando os críticos-provocadores tinham participado de apenas um ou dois encontros de cada grupo). Assim, a relação entre os críticos e o grupo foi igualmente mediada pela liturgia das transmissões digitais, com a qual temos nos acostumado, mesmo a contragosto: “Olá, vocês estão me vendo? Me ouvem bem? Minha conexão está ruim hoje. Eu caí e só voltei agora, perdi a tua fala. Acho que agora vai. Sim, estou vendo e ouvindo bem vocês. Vixe, tá trav…”. Como ser e propor, neste contexto, o almejado olhar híbrido de dentro/fora, atento e ativo, quando as condições de trabalho nos puxavam com tanta insistência para fora, para uma relação desejada mas não totalmente consumada? As perplexidades não foram poucas.
Acompanhamos diversos ensaios pelo Zoom, nos quais os atores liam, experimentavam e discutiam o texto já adaptado de Berg. Leandro, ao mesmo tempo em que se esforçava para colocar todos a par das situações objetivas e das possibilidades e impossibilidades do novo formato, também orientava e dirigia o trabalho dos atores, comentando suas escolhas, incentivando suas tentativas, estabelecendo conexões poéticas. Mais do que nunca, o texto manteve-se como elemento de sustentação da encenação, apontando caminhos e fornecendo os materiais necessários para a criação. Quando o diretor e toda a equipe se veem na urgência de exercitar o desapego a ideias tão queridas mas específicas do teatro presencial, a dramaturgia de Berg oferece alguma referência estável, algum farol para essa navegação nos mares digitais.
Além dos ensaios via Zoom (sempre gravados e revisitados), também mostrou-se fundamental para o processo o compartilhamento de materiais diversos em um grupo fechado no Facebook. Lá eram postados vídeos, gravações de ensaios, fotos, textos e outros materiais técnicos e poéticos, visualizados apenas pela equipe, e que auxiliaram a criação coletiva. Passear pelos posts desse grupo é visitar o emaranhado de vida e arte que está dando origem à montagem de Wonderland Ave..
Nos últimos meses, o diretor e a equipe se dedicaram a uma tarefa até então desconhecida: a conceituação, a produção, a filmagem e a edição de um video a ser exibido na estreia agendada para início de novembro. Era preciso fazer um produto audiovisual no tempo e com o orçamento de uma peça de teatro. Essa condição aparentemente incongruente foi determinante em todo o processo, desde a readequação da equipe e a adaptação do texto até o trabalho de pós-produção, passando pelo tempo e dinâmicas de ensaios. A direção decidiu, então, por criar e exibir uma obra (um filme-peça, uma peça-filme, um vídeo, uma peça de web-teatro, ou qualquer outro nome que se queira dar) de cerca de 50 minutos, acompanhando as problemáticas relações entre aqueles personagens – humanos e máquinas em conflito com as tecnologias e as inteligências artificiais.
O elenco – formado por Paulo Roberto Farias, Marco Marchessano, José Renato Lopes e Márcia Metz – encarou corajosamente o desafio de se apresentar, de atuar não para uma plateia lotada de pessoas atentas, no momento mesmo da estreia e das demais sessões, mas sim para os olhos de vidro de uma solitária câmera de filmagem, em um dia distante da hora marcada para a tão aguardada estreia. E, nessa aventura, nem tudo foram rosas: mesmo todo o cuidado e lucidez que conduziram o trabalho não foram capazes de evitar as inseguranças, as desconfianças, os receios e as hesitações de artistas acostumados com as dores e delícias das salas e dos palcos físicos, da coletividade presencial, dos corpos em contato, do ritmo e da adrenalina próprios do teatro pré-pandemia. Arriscando-se no terreno do audiovisual, a equipe se deparou com espaços novos, necessidades novas, tempos novos, prazos novos, ansiedades novas, relações novas. Tudo isso, obviamente, somado às tantas novidades sociais, econômicas, sanitárias e psicológicas que a pandemia obrigou todos a enfrentar – tudo ao mesmo tempo e agora. Estranho seria se tal contexto obtuso não impactasse no processo de criação...
Realizados os ensaios, armaram-se as condições para a gravação das cenas previamente definidas, a partir de um roteiro de vídeo baseado na dramaturgia de Wonderland Ave.. As cenas foram gravadas separadamente na casa de cada integrante do elenco, utilizando os espaços ali disponíveis como cenário. Uma equipe volante formada por Leandro, Billy Valdez e Paulinho Bettanzos – integrantes do Coletivo Catarse e responsáveis pela captação de vídeo e de áudio, respectivamente –, paramentada com acessórios de proteção individual (EPIs), passou um dia inteiro em cada locação, até reunir material cênico/audiovisual suficiente para o posterior trabalho de edição.
É importante salientar a parceria forte estabelecida entre Leandro e o Coletivo Catarse – parceria que esteve presente desde o início do projeto e se firmou cada vez mais ao longo do trabalho, sendo crucial em diversas etapas do processo, em aspectos técnicos e artísticos. O Coletivo Catarse é uma iniciativa de comunicação organizada nos princípios do cooperativismo, da autogestão e da economia solidária, pertencente à Rede de Pontos de Cultura. Em sua página na internet (www.coletivocatarse.com.br), o coletivo afirma que “procura estabelecer suas relações de prestação de serviços de uma maneira diferente, trabalhando com os tomadores sempre propositivamente e não de forma simplesmente tarefeira”. Pois foi assim que se deu. Billy e Paulinho estão ainda debruçados na edição dos vídeos, ao lado de Leandro.
Com a definição da agenda definida, cada crítico-provocador acompanhou pessoalmente um dos dias de gravação, onde foi possível perceber as dinâmicas criadas pela equipe para garantir a contracena necessária para a conexão entre elenco, direção, personagens e enredo. Uma delas foi a estratégia de colocar ao telefone (em viva-voz) a atriz que contracenava com cada ator que seria filmado, para que os diálogos fossem realizados de fato: um diálogo mediado por um celular, para ser apresentado ao público mediado por uma câmera, um microfone, um computador e uma rede mundial de internet. As incontáveis mediações de um set de filmagem caseiro mas não menos profissional, com direito a muito álcool gel, máscaras, café e comidas recebidas por delivery.
Interessante foi perceber que, apesar da roteirização prévia (necessária para a produção das filmagens e organização/divisão das tarefas), todos os envolvidos – direção, elenco, equipe de filmagem – permaneceram abertos para experimentações e invenções surgidas ali mesmo, no aqui agora da criação cênica, no calor da “apresentação” para aquela câmera. A improvisação, tão cara aos processos teatrais, se fez presente também naquela situação, misto de sala de ensaio, set de filmagem e teatro sem plateia. O teatro atual pode estar transformado, mediado e redimensionado, mas está bem vivo naqueles corpos, naquele texto, naquela equipe, naquela Wonderland Avenue. E, para coroar todo esse processo, esperamos que o teatro esteja vivo também no público que comparecerá à estreia, no dia 03/11 no Zoom, e nas relações possíveis que vão se estabelecer entre ele e os artistas que lá estarão.
Autora: Sibylle Berg
Tradução: Luciana Waquil
Direção teatral: Leandro Silva
Direção audiovisual: Billy Valdez
Elenco/ Personagens: Márcia Metz (Robô/ Coro/IA), José Renato Lopes (Pessoa 1), Paulo Roberto Farias (Pessoa 2) e Marco Marchessano (Pessoa 3)
Adaptação de roteiros: coletivo da equipe
Desenho e criação de maquetes e miniaturas: Silvia Serrano
Trilha Sonora: Paulo Betanzos
Projeto Visual: Silvia Serrano e Leandro Silva
Captação, edição e pós-produção: Coletivo Catarse de Comunicação
Provocadores críticos artísticos e acompanhamento: Michele Rolim e Henrique Saidel
Realização: Instituto Goethe de Porto Alegre e Sesc/RS
Parceria Cultural: AGORA Crítica Teatral
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