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Para os fazedores do Teatro, a pandemia da Covid-19 tem levantado muitas questões sobre o presente e o futuro desta arte, comumente associada às ideias de presença, de acontecimento e da natural necessidade de aglomeração das pessoas. Ir ao Teatro, no contexto pré-pandemia, pressupunha o encontro, um corpo a corpo em diversos níveis, um tête-à-tête entre espectador e obra.
Com o intuito de se proteger, seguindo as medidas de isolamento social unanimemente acordada pela OMS e demais autoridades de saúde como a mais eficaz no enfrentamento da Covid-19, muitos artistas de teatro tem aberto, a partir de suas experiências de confinamento, círculos importantes de discussões sobre a sua arte, nas quais a ressignificação do uso das tecnologias e da internet entram como parte do foco do interesse na busca de novas formas e arenas para o teatro. Muitos já se arriscam a ocupar as redes das mais diversas formas, tateando estratégias para seguir com suas trajetórias artísticas.
Nos círculos nos quais participo, vejo hoje dois grandes eixos de debates: um, que debate se essa forma de seguir fazendo Teatro não fere o que seria uma “essência” do Teatro (na qual eu não concordo, pois essa ideia de uma “essência” me soa elitista, clichê e conservador, negador exatamente da diversidade que o teatro é) e o outro, que se coloca bem mais à frente nessa discussão, de forma muito corajosa, proativa e instigante quando se dispõem e se arriscam, de forma responsável e não menos perigosa, a fazer o “teatro possível”, dentro das condições de uma pandemia global e atordoante para as nossas existências. São experiências que não respondem totalmente aos dilemas do Teatro na pandemia, mas que podem nos trazer imensas surpresas.
Penso que é neste segundo lugar - do risco ensaiado, calculado e corajoso porque assumido - que se situa a experiência do Grupo Jogo de Experimentação Cênica (Porto Alegre- RS) que, no dia 13 de junho de 2020, apresentou uma versão de seu trabalho “Deus é um DJ”, refeito para as redes sociais e transmitido através do Instagram do Instituto Goethe de Porto Alegre. Importante destacar preliminarmente, que faço essa análise a convite do site AGORA Crítica Teatral no lugar de espectador e de pesquisador das convergências entre Cena e Tecnologias, um campo pelo qual tenho particular interesse. E sempre tomo como ponto de partida para qualquer análise a observação e as inquietações que as experiências dentro deste campo me provoca. E é nesta esteira, das inquietações provocadas em mim pela experiência de “Deus é um DJ – Live”, que teço estas colocações.
O espetáculo foi montado e estreou nos palcos em 2019, anterior ao contexto da declaração oficial da OMS da Covid-19 como pandemia global. A peça, escrita pelo dramaturgo alemão Falk Richter, com direção do diretor Alexandre Dill, centra-se na história de um casal, interpretados por Louise Pierosan e Gustavo Susin. Contratados por uma galeria de arte para filmar e transmitir ao vivo o seu cotidiano, “ELA”, uma ex-VJ, e “ELE”, um DJ, ao transformarem o seu cotidiano num espetáculo ao vivo, acabam por borrar as fronteiras entre verdade e mentira, na tentativa desesperada de conseguir audiência. E acredito que está aí o gancho, a coerência da proposta da montagem do Grupo Jogo para a rede social.
Apresentado num formato multitelas, a apresentação buscou aproximar o teatro, a performance, o audiovisual e a interação ao vivo através da internet, numa intrincada rede de relações entre essas diversas linguagens, com uma direção de vídeo complexa assinada por Gabriel Pontes.
Assistindo a obra da minha casa, “ao vivo”, as camadas da proposta começavam a se revelar. Duas que me pareceram bastante nítidas: a participação ao vivo dos atores, intérpretes de ELE e ELA; e uma segunda, com a exibição de trechos gravados da peça quando esta foi apresentada no teatro, em meio a já saudosa aglomeração do encontro corpo a corpo antes da pandemia. E segue-se pelo menos mais três camadas, não tão nítidas pelo menos para mim: a participação dos atores com textos, comentários e dados atualizados postados nos comentários que remetem ao contexto da pandemia, feitas sobre suas falas já previamente gravadas, a inserção de vídeos que me parecem terem sido feitos em ambiente doméstico e que ampliaram a percepção do texto e da obra gravada, a participação ao vivo do público - que num primeiro momento não se achava, pedindo desesperadamente para desabilitar os comentários, até compreender que fazia parte do jogo e entrar nele – e, por fim, a própria participação do diretor, Alexandre Dill, com inserção de seu trabalho de direção em tempo real ou não?. E claro, a própria interação do processo de exibição, montagem e sequenciamento de telas e imagens na camada audiovisual que era algo notadamente interessante.
Como espectador, faço questão de evidenciar minhas dúvidas sobre essas diversas camadas, porque penso que está exatamente neste lugar o grande mérito dessa experiência do Grupo Jogo com a apresentação de “Deus é um DJ - Live”: o borramento das fronteiras entre as diversas linguagens envolvidas e a completa confusão entre ao vivo e gravado, real e virtual, anterior e atual, verdade e mentira, o antes, o depois e o agora, como a vida do próprio casal ELE e ELA.
Penso que o Grupo Jogo se adianta num entendimento crucial para esse momento que estamos vivendo: que as tecnologias e a internet não estão aí para salvar o Teatro e que não basta simplesmente querer transpor as peças previamente gravadas, em arquivo ou em formato de lives para as redes sociais. No geral, estes modos de colocar as peças nas redes tem sido bastante frustrantes e cansativas. É preciso repensar os formatos, considerando as dinâmicas das redes sociais, as potências (e os limites) que estas trazem na tentativa de usá-las como espaço e formato para a experiência teatral. O Grupo Jogo faz isso muito bem exatamente porque não faz uma mera transposição, mas atualiza e recompõe sua montagem de “Deus é um DJ” para as redes sociais e, neste sentido, sai na frente aqui no Rio Grande do Sul nesta reflexão. A experiência, ao meu ver, foi bem sucedida porque não parte de uma ideia de transposição, mas de atualização e re-composição da obra, inclusive trazendo para dentro desta as possibilidades interativas da internet e redes sociais, que não foram ou não seriam possíveis na realização da peça nos palcos.
“Deus é o DJ - Live” nos provoca a pensar o teatro digital, ou o teatro feito na e para a internet, ou o ciber teatro (chamemos como quiser e com as devidas implicações de nossas escolhas ao nomeá-lo) não como um “novo teatro”, numa visão bem otimista, ou sua reificação e destruição, numa visão hiper pessimista. Saindo desses caixotes, a experiência de “Deus é um DJ - Live” recoloca a questão do Teatro nas redes como um desdobramento, sem pretensões de substituir, nem de disputar, nem de pôr em cheque a singular experiência do teatro ao vivo, realizado de forma presencial e na experiência do encontro e da aglomeração, impossível para o exato momento em que escrevo estas linhas por conta da grave situação da Covid-19, particularmente no Brasil que hoje conta com mais de 1 milhão de infectados e 60 mil mortes.
A discussão sobre ser ou não teatro me parece, nesse momento, infecunda e pouco producente. A curadora e crítica de teatro Danielle Small, em recente e instigante artigo, trata desta polarização, ao falar sobre o teatro filmado, ou theatrofilm: “Diante das questões da arte, são inócuas as perguntas que demandam ‘sim ou não’ como resposta. Talvez tenhamos que responder ‘sim e não’, afinal, não podemos retirar do âmbito do teatro algo que foi concebido como teatro e que só faz sentido se for percebido e pensado como teatro. Um registro de uma peça é algo que pertence, inevitavelmente, à cultura do teatro, sua história, sua documentação, sua esfera de conhecimento. O teatro é feito de muitas coisas que compõem a ‘biosfera’ na qual os espetáculos vivem”.
Ante os desafios que a pandemia impôs aos fazedores do Teatro, talvez deveríamos estar mais abertos e colocar a questão num outro patamar, fora da armadilha do “ser” ou “não ser” teatro. E é exatamente ao despolarizar a questão - se é ou se não é teatro, se é bom ou ruim, se pode ou se não pode - que o Grupo Jogo abre a brecha, a fenda, propõe um caminho para um teatro possível, potente, vivo e envolvente em tempos de pandemia. A própria ideia de “encontro” passa a ser resignificada e expandida, e novas formas de convivialidade teatral são experimentadas e afirmadas. Afinal, estávamos todos “ali”, diante de nossos computadores, celulares ou tablets, compartilhando da experiência comum de “Deus é um DJ – Live”, de forma concreta.
E aqui penso que devemos nos debruçar, mesmo que suscintamente, sobre o próprio sentido de “real” e “virtual”, comumente associando a virtualidade como oposição a experiências reais. Experiências virtuais são reais e concretas, pois essas ideias não são opositivas. Aqui entendemos o virtual como potências – portanto reais e concretas – aptas a se atualizarem na experiência de cada um. Para o filósofo Pierre Lévy, “em termos rigorosamente filosóficos, o virtual não se opõe ao real mas ao atual: virtualidade e atualidade são apenas duas maneiras de ser diferentes" (Lévy, 1996, p. 15). Nas redes, as experiências virtuais são feixes de potências que vão se atualizar na experiência concreta de todos que a compartilham. O virtual é um “não-presencial” presente, existente; ele produz efeitos. Lévy assevera que o virtual é “...um modo de ser fecundo e poderoso, que põe em jogo processos de criação, abre futuros, perfura poços de sentido sob a platitude da presença física imediata” (Lévy, 1996, p. 12). Para o mesmo filósofo, é enganosa a oposição que comumente fazemos entre as ideias de “virtual” e “real”, se vamos mais a fundo na nossa experiência.
Importante destacar que esta experiência de transposição ou de recomposição da cena do palco para as arenas virtuais não é tranquila e envolve muitos riscos, alguns não pertencentes à sala de ensaio e aos palcos e com os quais atores e diretores já lidavam no cotidiano da criação de seus trabalhos antes da pandemia. Me recordo de ter acompanhado um comentário do diretor Alexandre Dill no Facebook de seu nervosismo e excitação com a experiência que iriam realizar logo mais a noite no Instagram, como algo que não sentia com tamanha força há um tempo. É não é para menos: além da carga emocional no trabalho de ensaios, produção e demais elementos cotidianos do fazer artístico, a transposição para as redes sociais e a mediação da cena pelas tecnologias implicam em riscos complementares.
Garantir a sincronização dos recursos no tempo e sequência previstos, torcer para que fatores externos não derrubem a conexão, lidar com a possibilidade do delay, um fenômeno técnico comum na transferência de dados pela internet, lidar com o feedback remoto do espectador, etc. Enfim, eu poderia enumerar uma longa lista de outros fatores de ordem techno, para reforçar o quanto o processo de fazer uma experiência teatral na internet pode ser tortuoso e arriscado para a equipe envolvida. A experiência do Grupo Jogo correu muito bem, obrigado! Da minha tela, tive alguns distúrbios com o áudio, com a transposição de imagens, que não afetou minha recepção da obra porque não tenho certeza até o momento se era incidental ou de propósito. Eu continuava ali, no jogo!
Um outro ponto, que descola dos anteriores, mas que precisa ser levado em conta, diz respeito à sobrevivência econômica da cadeia do Teatro em tempos de pandemia e, esperamos que em breve, de pós-pandemia, quando as situações de isolamento social permanecerão por largo prazo, seja pela abertura progressiva dos espaços, seja pelas próprias cicatrizes sociais que uma pandemia global com tantas mortes poderão gerar na vida social. Não creio que a tranquilidade para sentarmos um ao lado do outro na plateia do teatro retornará por decreto das autoridades de saúde e talvez tenhamos um longo caminho de restabelecimento desta dinâmica ou, ao contrário, nunca mais estas serão restabelecidas, porque outros modos de convivência social estarão definitivamente incorporadas às nossas vidas num mundo pós-pandêmico. Como pagar as contas sem bilheteria, sem patrocínio e sem políticas públicas aptas e ágeis para atender as necessidades das artes num mundo pós-pandemia, considerando que este já era um grave problema antes da pandemia, só agravado por esta?
A apresentação de “Deus é um DJ - Live” foi gratuita e aberta para todos, através da rede social Instagram. Mas isso não significa que não houve custos envolvidos na sua criação e nem que o público estava dispensado de se comprometer com isso. Para tanto, o Grupo Jogo manteve durante a exibição virtual (e a posteriori) a realização de um chapéu-virtual, permitindo aos espectadores remotos o justo pagamento à experiência através de contribuição espontânea, debitada também através de plataforma on-line. Dessa forma, coloca na roda a questão dos caminhos possíveis, viáveis e a serem experimentados para a construção de uma sustentabilidade econômica do Teatro no contexto da pandemia e na pós-pandemia.
A experiência de “Deus é um DJ - Live” não resolve todas as inquietações que a pandemia traz para a arte teatral. Mas aponta que existe um “teatro possível”, nascido pela imbricação das tecnologias e pela ocupação da internet. O grupo, na verdade, inaugura um processo mais amplo e já anuncia a realização de outras experiências similares na internet, para as quais certamente seguiremos atentos e interessados. Essas experiências se ligam a muitas outras que já haviam sido experimentadas, algumas inclusive anteriores ao contexto da pandemia, e por isso inventadas e exercitadas fora da pressão de querer resolver uma aparente “roubada” em que o Teatro se ver metido agora, como disse o ator e dramaturgo Giordano Castro, do Grupo Magiluth de Pernambuco, em uma recente live no projeto Poéticas da Coexistência. Pra mim, essa é a grande colaboração da experiência do Grupo Jogo nesse momento: que confiemos que o Teatro sempre se fez da vida e a vida sempre encontrou projeção no Teatro. Se a vida mudou, o Teatro encontrará os caminhos, porque os seus fazedores seguirão inquietos, tateando, inventando e experimentado esses caminhos. E estes não o fazem porque desejam se salvar ou salvar o Teatro da pandemia. Trabalhadores do teatro não fazem teatro por causa das “roubadas” existenciais da vida. O fazem porque o Teatro é o lugar, o paradigma, os óculos pelos quais eles enxergam, constroem e reinventam a vida cotidianamente.
*Leandro Silva é artista bonequeiro, diretor teatral do Grupo Fuzuê e mestre pelo Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da UFRGS autor da dissertação Teatro de animação e tecnologias : um olhar a partir da Interface sobre o trabalho de algumas companhias do Rio Grande do Sul
REFERENCIAS
LEVY, Pierre. O que é o virtual. São Paulo: Ed. 34, 1996.
__________. As tecnologias da Inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. 14. ed. São Paulo: Editora 34, 2012.
SMALL, Daniele Avila. O fantasma do teatro: Notas sobre teatro filmado em diálogo com o registro audiovisual de Hamlet do The Wooster Group. In: Questão de Crítica: Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais. Disponível em <http://www.questaodecritica.com.br/2020/04/o-fantasma-do-teatro/#more-6674>.
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Autor: Falk Richter
Direção: Alexandre Dill
Elenco: Gustavo Susin e Louise Pierosan
Direção audiovisual: Gabriel Pontes