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A intensidade de Fábrica de Calcinha pode ser medida pela primeira coisa que me ocorreu dizer a Marina Mendo ao final da peça: “Como consegues fazer duas sessões num dia?”. Escrevendo agora, percebo que me referia não ao tanto de esforço físico e de entrega emocional praticados por ela em escassos 40 minutos de função – estava questionando se eu próprio suportaria mais daquela crispação sonora, daquela evocação das dores do amadurecimento, daquele jornada entre as tantas esquinas, becos e ruelas que a mulher é forçada a explorar na cidade dos homens.
Fábrica de Calcinha tinha conseguido o que queria: me desacomodar, me cassar a segurança, me privar do previsível. A começar pelo espaço. O espetáculo é encenado em um grande salão da chamada Bronze Residência, um espaço com um pé-direito alto, com a fachada aberta em grandes janelas de frente para a Duque de Caxias, uma das ruas mais antigas de Porto Alegre, a algumas quadras de onde passei minha infância. Na noite abafada do outono gaúcho, esse foi meu primeiro deslocamento. A sala estava superlotada e abafada, a ação se daria no meio dos espectadores, ao som dos carros subindo da Duque, com visíveis vazamentos de luz. Como me concentrar num espetáculo assim?
É que a montagem dirigida por Marina pratica um talento esquizofrênico: lida com detalhes e emoções delicadas, mas trata o público na porrada durante a maior parte do espetáculo. Por momentos, me senti como se estivesse participando de um blind date (quando duas pessoas se encontram sem se conhecerem previamente), levado pela mão (do artista) ao encontro de um desconhecido (eu). Essa imagem se justifica pela pesquisa que deu origem a Fábrica de Calcinha. A equipe de criação deambulou pelo centro de Porto Alegre com os olhos vendados, expondo-se às constantes provocações que uma metrópole oferece. Os áudios registrados nas ruas foram gravados e incorporados à dramaturgia sonora, mas não se deve desprezar os efeitos colaterais na forma de cheiros, de inevitáveis emergências, do esforço dramático de compor uma narrativa sem contar com a imagem.
Os outros espectadores, imagino, estavam como eu: à espera de que o material colhido na deriva gerasse uma crônica da cidade grande. Mas não. A cacofonia absorvida pela equipe surge em cena mais efetivamente só no final do espetáculo. A primeira metade – e esse é o fator surpresa – está pontuada pelos vários partos que uma mulher deve experimentar ao longo da vida. É como se a venda nos olhos forçasse Marina a um mergulho em sua memória afetiva, no inconsciente coletivo que ela compartilha com outras mulheres. Bem que Chico Buarque escreveu: “Te avisei que a cidade era um vão”.
A primeira cena nos apresenta ao que será um grito de passagem. Marina, como se fosse uma avó de todos nós, brinca com alfinetes em uma pequena almofada fixa a seu pulso, enquanto gira um daqueles bancos de madeira pesados, com rosca. O barulho do rodear do banco é processado pelo músico Ricardo Pavão, munido de samplers, pedais de efeitos, microfones e amplificadores, num procedimento que conduzirá o espetáculo. O texto é de Hilda Hilst, e fala de alguém prisioneiro do barulho (sempre ele) de chaves na fechadura, programas de rádio e sons noturnos por trás de portas. Um livro folheado por acaso distorce o que é paixão: está ali, letra por letra, escrito “fode o meu cu”.
Corte, e o texto é de Matéi Visniec descrevendo a invasão da cidade por borboletas. Numa tela rústica, projeções low tech de um retroprojetor manejado por Marta Felizardo fazem miçangas coloridas materializarem a infestação dos insetos. Se antes era a descoberta aberrante da sexualidade, agora entra em cena a onipotência infantil, que cobra seu preço pelo medo à destruição. Marina potencializa o risco. Só com uma camisola e borzeguins, comprometida apenas com sua fábrica de emoções, ela se faz frágil, depois afronta, dispersa a energia e volta a explodir. A capacidade de usar o som como elemento dramático afirma-se: ela goza, late, tosse, uiva e não são sons, se fazem diálogos pela repetição, se escutam coros a ecoar solidários na dor. A manipulação do som não é o espetáculo – é ferramenta que envolve o corpo de Marina, as luzes dos carros que passam na rua, a incapacidade de percebermos os detalhes (que talvez nos tirem da aflição de conseguir racionalizar).
Há vários minutos que se dispensaram as falas. Agora Marina está nua, com um badalo no pescoço, e dispõe um pedaço de espelho no chão entre suas pernas. Simula estar dando à luz, depois ordenha os próprios seios que derramam leite no fragmento. Imagem inesquecível e didática para os homens: ela mirando no espelho sua imagem distorcida pelos pingos de leite. Marina reflete: mulher e mãe têm a mesma imagem? O fato de Marina tirar leite de seu seio é perturbador: ela provavelmente está amamentando. “Quanto dela está em cena?” é a indagação inevitável e dispensável que se apresenta. Mesmo sua nudez é pautada por um estado de energia que descarta o erótico. Talvez o que a encenação de fato queira: há um corpo em cena, massa de manobra com fluidos, com estética própria, dialogando com a brutalidade das vozes e ruídos. Será uma mulher? A mulher? Ah, é quase apenas um corpo.
Finalmente os sons da cidade tomam a frente: “Fábrica de calcinha!”, “Acabou o domínio do demônio!”. Longe de ser a estrada de tijolinhos amarelos: Marina descalça os borzeguins, liberta-se e enfrenta o risco dos pés desprotegidos sobre telhas de zinco. Não sabe bem se está feliz ou com medo, mas corre e corre. Blecaute. Pela fresta da janela, ouço e vejo os carros. A cidade é a da minha infância idealizada, mas é também de uma mulher que se vê deformada no espelho. São dois minutos quase intermináveis, em que Marina finalmente está imóvel, e nada ouvimos – só as nossas reflexões, distorcidas ou não, com a trilha dos automóveis ou dos nossos fantasmas.
Prestei solidariedade desajeitada de homem indo a pé da Bronze Residência até minha casa, trilhando 40 minutos abafados, poucos carros a passar por mim. Como ocorre quando assisto a espetáculos que me impactam de forma desconcertante, prefiro ir embora calado, evitando as discussões naturais com conhecidos na saída. Não disse a Marina, mas, alguns dias depois, andando no centro de Porto Alegre, tão familiar a mim e ao mesmo tempo tão ingrato à minha memória, percebi que a Fábrica de Calcinha seguia trabalhando. A partir de uma escalada de fragmentos sonoros, lembrei do pedinte de rosto informe, do mau humor de Mario Quintana ao ser abordado, de como o brique Ao Belchior era uma loja atulhada de poeira e de mistérios. E eu, do tempo em que se jogava futebol na praça do Portão, comprei tíquete para uma viagem à infância.
Publicada originalmente na Revista Iluminuras v. 20, n. 48 (2019)
Crédito da foto: Natalia Utz
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FÁBRICA DE CALCINHA
Direção Geral: Marina Mendo Criação Sonora: Ricardo Pavão Criação de Luz: Marta Felizardo Ativadores da Cena (ao vivo): Marina Mendo, Marta Felizardo, Ricardo Pavão Performances vocais (em off): Bethânia Panisson Ávila, Dedy Ricardo, Lígia Lasevicius Perissé, Ricardo Pavão, Rossendo Rodrigues, Tereza Mendo Rodrigues Fragmentos Textuais: Hilda Hilst (A obscena senhora D.), Matéi Visniec (A Louca Tranquila), Marina Mendo e Ricardo Pavão Participação na cuíca: Mateus Ávila Figurino: Marina Anderle Giongo Provocações cênicas e orientação de meditação: André Rosa Técnico de Som: Beto Chedid