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Sempre me chamou a atenção que as atrizes a interpretarem Joana da peça Gota D'água num circuito de mercado teatral mais visibilizado fossem mulheres brancas. Isso porque a dramaturgia de Chico Buarque e Paulo Pontes, escrita em 1975, torna evidente, do ponto de vista da articulação realista das personagens individuais, que Joana é negra. Há muitos indícios ao longo da peça confirmando essa tese: Joana é pobre, é lavadeira, é de santo. Houve um tempo no Brasil em que associar pessoas negras a práticas negras de religião, trabalho e arte era expressão de um racismo de ordem estereotipante. De fato, essa percepção faz sentido quando os modos de produção de peças teatrais, filmes e novelas estão nas mãos de pessoas brancas incapazes de compreender, por conta de seus proveitos sociais historicamente determinados, a importância da representatividade no sentido estético e político da produção cultural. Por outro lado, a reivindicação da negritude de personagens importantes nos cadernos das artes brasileiras constitui força de trabalho em duas vias: o combate à exclusão de artistas negros dos meios produtivos das artes e a realização de laboratórios estéticos nos quais, finalmente, epistemologias não-brancas podem subsidiar as concepções do universo da cena.
Aqui, no entanto, não quero discutir lugar de fala, conceito precioso esse que infelizmente foi cooptado com facilidade pela cultura neoliberal e hoje parece cercear o debate sobre o agenciamento de discursos e suas técnicas de exercício de poder.
Assisti há alguns meses ao espetáculo Navalha na Carne Negra, dirigido por José Fernando Peixoto de Azevedo. A peça é uma adaptação do texto Navalha na Carne, de Plínio Marcos, encenado pela primeira vez em 1967, cujos personagens sofreram efeitos parecidos aos de Joana de Gota D'água no teatro sudestino. As figuras caucasianas nos livros de história teatral evidenciam não apenas uma configuração estética branqueadora, mas bastidores do ofício igualmente arraigados na exclusão racista porque inacessíveis do ponto de vista econômico e social.
O adjetivo Negra do título da peça parece de imediato tese de princípios do grupo. Além de estabelecer uma provocação sobre as estruturas realistas do texto de Plínio Marcos, também revela a tomada de posição sobre um ponto de vista racializante fundamental à temática social estabelecida na peça: a carne negra não é a carne branca, e a carne branca não é universal. As condições em que estão a prostituta Neusa Sueli, o cafetão Vado e o camareiro gay Veludo são específicas de um determinado extrato sócio-racial brasileiro. Nesse sentido, Elza Soares é duplamente citada no espetáculo. Do ponto de vista conceitual os versos da canção A Carne, de Seu Jorge, Marcelo Yuka e Ulisses Capelletti, cantados por ela, são uma espécie de manifesto silencioso: “a carne mais barata do mercado é a carne negra”.
Na parte final, um epílogo adicionado pelo grupo no esteio da força desse momento histórico, a canção de Douglas Germano O que se cala, também interpretada por Elza Soares, apresenta-se como trilha sonora de um videoclipe arrebatador que reconfigura as personagens à luz de uma esperança simples e por isso mesmo bonita, cotidiana, quase serena, ainda que marcada pela gravidade da vida material.
A linguagem audiovisual é fundamento da encenação de Zé Fernando. Os espectadores assistem ao mesmo tempo a duas formatações da Navalha: uma teatral, em ato presente, e a outra cinematográfica, através de uma tela no centro do palco pela qual são transmitidas imagens filmadas ao vivo por uma camerawoman, também negra, outsider dos termos da ficção mas acolhida na camada do fazer teatral presentificado. O recorte cinematográfico opera como um editor imediato de pontos de vista e projeta as personagens em nuances complexificadas, tornando-as autoras de cada movimento da narrativa.
A atriz Lucelia Sergio e os atores Raphael Garcia e Rodrigo dos Santos têm um surpreendente desempenho em cena - não que desempenho seja a melhor palavra para definir os atravessamentos produzidos por uma interpretação inteiramente apropriada do objeto ficcional. O trio em cena parece ter domínio técnico e, o mais importante, estético da linguagem proposta pela associação entre iluminação, cenografia e elementos de encenação. Sua liberdade em cena estabelece um corajoso trânsito entre a linguagem dramática realista e a apropriação das zonas do corpo fotogrâmicas, fotogênicas, substanciais à configuração da base audiovisual.
Navalha na Carne Negra foi um dos mais instigantes espetáculos que vi em São Paulo no primeiro semestre. Creio que seu acontecimento gera um vínculo intenso com espectadores negros e brancos, posto que o vigor do sistema estabelecido em cena se mantém do início ao fim, fazendo com que sintamos, na posição de observadores ativos, o fio da lâmina invisível de Plínio Marcos e da negritude brasileira, como um corte muito leve e rápido que não cria uma nova ferida gratuitamente para imolar o público, mas faz lembrar daquela que ainda não fechou, ardendo nos banhos de salmoura, a dor não cicatrizada de um corpo social açoitado pelo racismo.
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NAVALHA NA CARNE NEGRA
Direção Geral e Dispositivo Cênico: José Fernando Peixoto de Azevedo
Atores: Lucelia Sergio, Raphael Garcia e Rodrigo dos Santos
Vídeo: Isabel Praxedes e Flávio Moraes
Iluminação: Denilson Marques
Direção de Arte: Criação Coletiva
Assessoria para o Trabalho Corporal: Tarina Quelho
Programação Visual: Rodrigo Kenan
Produção: corpo rastreado