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Tremor estreia amanhã (22 e 23 de maio) às 20h no Teatro do Goethe-Institut, fechando a edição 2018 do Transit. O projeto, criado pelo Goethe-Institut, financia dois criadores gaúchos a proporem encenações próprias para um mesmo texto, criado por um dramaturgo ou dramaturga alemão.
Na edição de 2018, o texto escolhido foi Beben (em português, Tremor), escrito pela dramaturga e diretora Maria Milisavljevic. Patricia Fagundes e a Cia. Rústica criaram Tremor: sobre como as Coisas Foram Chegar neste Ponto (que estreou 17 e 18 de maio), enquanto Lucca Simas e o grupojogo de experimentação cênica vão estrear Tremor (22 e 23 de maio). Os dois espetáculos voltarão ao palco do Goethe-Institut entre o final de maio e início de julho.
A seguir, leia o relato de Michele Rolim sobre o processo de criação de Tremor.
Lucca Simas, 32 anos, encara sua primeira direção profissional com Tremor. Ele já dirigiu Insustentável e Shopping and Fucking, dentro do Departamento de Arte Dramática (DAD) da UFRGS, porém é mais conhecido por seus trabalhos como iluminador. Entre eles destaca-se Na Solidão, do Grupo Hybris, com o qual venceu o Açorianos de Dança de Melhor Iluminação em 2010. Ele integra o grupojogo, conhecido pelos espetáculos dirigidos por Alexandre Dill e que completa 11 anos de trajetória.
Os ensaios de Tremor aconteceram no Goethe-Institut, e também no espaço do grupojogo. Trata-se de uma das salas do prédio nº 711 da Rua Santa Terezinha, no Bairro Farroupilha, ao lado da Vila Planetário. O grupo faz parte do projeto Usina das artes. Com a Usina do Gasômetro fechada, a solução encontrada pela prefeitura de Porto Alegre foi transferir os grupos do projeto que ocupavam o complexo cultural para esse espaço. Ainda que a sala não esteja com as condições adequadas, poder utilizá-la foi fundamental para o desenvolvimento do trabalho.
Levando à cena os intérpretes Manu Menezes, Louise Pierosan, Gustavo Susin e Lucas Prado, o trabalho parte de uma pesquisa acadêmica de cinco anos do diretor sobre biopoéticas teatrais, definida por ele como práticas que tratam a memória como agenciador de criações teatrais.
Uma das frases mais repetidas pelo encenador Lucca durante os ensaios era: “se olhem nos olhos”. Com uma direção afetiva, Lucca não impunha nada, fazia os atores percorrerem diversos caminhos na interpretação, do grotesco ao gesto mínimo. Começaram como “personas” e aos poucos foram ganhando humanidade e se transformando nos personagens que iremos encontrar na peça. A Mãe (Manu), o Soldado (Gustavo), o Jovem (Lucas) e o Narrador (Louise). Os personagens seguem sem nomes, pois a ideia é que o ator seja o mediador desta ficção, colocando o ator como criador e responsável pelo que diz.
Lucas Prado, Louise Pierosan, Lucca Simas, Manu Menezes e Gustavo Susin debatendo sobre o texto. Foto: Alexandre Dill
Uma das preocupações presentes desde o início dos ensaios era que os espectadores pudessem compreender as histórias presentes no texto. Para isso, Lucca deixou em evidência três linhas dramatúrgicas. Uma refere-se à figura da mãe que tinha perdido o filho, e consequentemente a sua humanidade. A Mãe deseja encontrar o assassino de seu filho e entender por que ele fez tudo aquilo, resgatando assim sua própria humanidade. A segunda linha dramatúrgica da peça refere-se a esse Soldado, que matou uma criança em um cenário de guerra.
E a terceira linha dramatúrgica é a da Narradora. Ela conta a história do homem na borda de Ulro e do seu irmão, o Abandonado (fazendo referência ao Livro de Jó). Na história, os dois criaram um mundo e, em algum momento desse convívio entre os dois, um deles (o Abandonado) começou a não reconhecer mais esse mundo e resolveu ir embora. Depois, quando ele vê o mundo que os dois criaram sendo destruído pelo seu irmão, resolve voltar para não deixar que o mundo acabe. Para o diretor, esse homem da borda do Ulro representa o imperialismo, enquanto o Abandonado representa o humanitarismo, que na encenação de Lucca corresponde aos personagens Soldado e Mãe. “Gostaria que as pessoas tivessem o entendimento de que existe uma história real acontecendo, com duas pessoas ali, e que existe uma história virtual acontecendo, que é de alguém contando uma história”, disse Lucca em um dos encontros.
Louise Pierosan interagindo com uma das tecnologias presentes na peça. Foto: Alexandre Dill
Há cinco anos, o diretor pesquisa sobre Biopoética. A pesquisa resultou no trabalho Biopoéticas teatrais: estudos de irrupção de memórias do real na cena, defendida no Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da UFRGS, em 2015.
Já na divisão dos personagens do texto, Lucca conectou os personagens às memórias dos atores. Susin, que interpreta o Soldado, tem que lidar com os problemas de depressão da mãe e de como se sente culpado pela situação. Isso corresponde com o Soldado, que se sente culpado por algo que ele fez a uma mãe. E Lucas, que faz o Jovem, parte de uma experiência que ele teve na Austrália, de viver longe da família, de ser o estrangeiro, e de como aquilo afetou a formação dele.
Já Lou, o Narrador, está contando uma história bíblica de um embate entre dois irmãos. E Lou tem uma questão muito forte com a irmã, ambas não se falam mais. E também possui uma formação familiar religiosa. E Manu viveu longe da mãe, e muito tempo depois houve um reencontro. “Durante o texto foram inseridos trechos da vida dos atores com a intenção de que o espectador também se questione sobre o que é real e virtual. O que é da memória da pessoa ou é do texto?”, comenta Lucca.
Durante os ensaios, a crítica interna colheu depoimentos do elenco acerca do texto e dos personagens construídos pelos atores ao longo do processo de criação. A seguir, trechos desse material:
(...) o Soldado é um homem, por sua vez, que expressa o materialismo pragmático e a frieza militar, mas ao mesmo tempo, revela-se um saudosista de um tempo em que não havia culpas. (...) Difícil dizer aonde o texto quer chegar. Mais fácil talvez seja dizer onde ele pode nos levar. Pode nos levar a um espaço de reconhecimento de uma sociedade cada vez mais fragmentada, onde se encontra o que se procura nos locais onde não se espera, rotas de colisão que não necessariamente ferem, mas fortalecem, caminhos e medidas de sobrevivência contra uma constante ameaça que ninguém compreende, um ruído que é o uivo do homem, um tremor que é o fraquejar dos corações, mesmo daqueles mais duros ou indolentes.(...) Eu como ator me vejo em constante risco. Primeiro por que sei que terei encontrar a maneira de contar essa história a partir das minhas vivências, da minha frieza, da minha saudade, da minha coragem e da minha franqueza. Tremor não é um texto que se presta a proteger o ator, porque é justamente na sua superexposição e no seu desnudamento que a história pode encontrar sentido, uma vez que falamos de homens e mulheres multifacetados. (Gustavo Susin).
Desde a primeira vez que li esse texto me identifiquei muito. Era como se eu mesma tivesse escrito. Chorei muito quando eu li, porque senti que alguém conseguiu colocar em palavras tudo o que eu estava sentindo, principalmente neste ano passado em que morei no Rio de Janeiro e passava exatamente por todas essas sensações. (...). Tremor é uma leitura escalafobética dos tempos de hoje: estes tempos em que desejamos solitude, mas ao mesmo tempo, buscamos atenção, aprovação e pertencimento. (Manu)
Maria Milisavljevic coloca em cena um mundo regido pela razão. No entanto, é um mundo onde as pessoas em si não são as que pensam, ela depositaram a sua confiança em um ser superior, ou em um outro alguém que vai pensar por elas, e elas próprias se esqueceram de pensar, refletir sobre si e sobre os outros. Confiaram essa tarefa ao tal homem na borda de Ulro. Esse "ser superior", que pode ser interpretado de diversas formas, rege o mundo pela razão ao seu bel prazer, joga com as pessoas como se a vida fosse um jogo de xadrez. As pessoas já não conseguem mais pensar, respirar, envolvidas em seus próprios universos particulares, sem olhar para o lado, sem conseguir subverter a ordem vigente das coisas. O irmão do homem na borda da Ulro simbolizando o amor. O mundo já foi dele um dia. E só uma das personagens se dá conta que a subversão dessa ordem vigente é pelo amor e pelo perdão. (...). (Lou).
(...) A figura do Jovem aceita de bom grado os comandos dados pelo Soldado. Sente-se vivendo, finalmente, dentro um dos seus jogos. No entanto, é nesse momento da peça que podemos observar no Jovem algo de empatia, um incômodo em relação à ordem que está recebendo. Quando afirma que não pode atirar em uma criança, fica claro que há para ele um conflito entre o que lhe está sendo pedido e o que ele gostaria de fazer. Gosto da referência do casaco cheio de roupas, que a figura da mãe descreve em outro momento como sendo uma característica de seu filho, quando foi morto. Penso que, nesse momento, a figura do Jovem sendo solicitada para atirar possa inclusive representar a figura do Soldado em um outro tempo, quando executou uma ação que não necessariamente correspondia ao seu verdadeiro desejo - e sim à pressão de seguir uma ordem vinda de um lugar tido como superior. E que possa talvez ser nesse momento - no qual se mata pela primeira vez, no qual se mata uma criança pela primeira vez, quando fazemos algo terrível que até pensávamos não ser capazes - que algo da humanidade se quebre muito fundo e nos distancie dos sentimentos de compaixão e empatia. E que a partir disso o sentimento de culpa, avassalador como é, seja evitado a todo custo, fazendo com que enfrentamento pessoal com esse ato e a reflexão sobre o que se passou se tornem tarefas altamente desafiadoras. (Lucas Prado).
Michele Rolim acompanhando um dos ensaios na sala do grupojogo no complexo Santa Teresinha. Foto: Sandro Ka
1)Quando tu leste o texto, o que te chamou a atenção, que fez com que tu quisesses montá-lo?
Lucca Simas: Lendo o texto, a primeira coisa que percebi é que é um texto realmente político. Eu estava lendo um artigo na época que eu estava estudando a montagem do texto. O artigo faz uma crítica sobre como, a partir da década de 80 até hoje, a ciência avançou a passos muito rápidos, e o ser humano regrediu cada vez mais. Parece que tem uma balança entre esses dois polos. Avançamos tecnologicamente em bem estar, em saúde, e regredimos na questão de visão do outro, de humanitário, de comunidade, nas relações. Vamos nos entender enquanto diferentes, não enquanto iguais. Os coxinhas e os petralhas, os de direita e os de esquerda. Os de direita só se entendem com os de direita, e os de esquerda com os de esquerda. E eu acho que não é essa a proposta de viver numa sociedade harmônica, equilibrada. É todo mundo nas suas particularidades e peculiaridades se entender. Encontrar os pontos de conexão, por uma memória. Eu e fulano, por exemplo, a gente já teve um caso de perda na família, mesmo não tendo ideologias políticas ou visões de mundo atual parecidas, temos um ponto em comum, sabemos o sentimento que é perder alguém muito querido, então podemos se conectar por aí e se entender, mesmo que não se entendamos em outro campo.
2) Como a peça dialoga com o real e o virtual?
LS:A interação não se dá somente pela palavra, ela também dialoga com o imaginário, o afetivo, o cinestésico. Sendo assim, trago a imagem de uma rampa com um teto comprimindo a cena, que gera efeito de instabilidade e de risco. Para além do campo imagético, este conceito cenográfico também dialoga com o real, pois os atores estão sofrendo o efeito desta estrutura também (o risco de cair da rampa é real). A iluminação caótica, de outdoors, com lâmpadas fluorescentes, leds e neon, ganham força no nosso imaginário simbólico. O uso de tecnologias e plataformas vêm de uma abordagem afetiva (hoje todos temos instagram), etc.
3) O texto traz referências de uma sociedade européia. Foram realizadas adaptações para pensar o Brasil de hoje?
LS: Acredito que a potência deste texto está na desterritorialização dele, pois seus lugares de fala (econômico, político, simbólico, pessoal e coletivo) são uma reflexão/provocação para o pensamento contemporâneo atual/real. Como eu, brasileiro, gaúcho, de Porto Alegre, vejo essas relações de poder? Como me movimento, e movimento meus desejos/afetos nesta realidade complexa? Foi adaptado tudo que é da realidade própria alemã, para a realidade própria brasileira: como a nossa complexa crise institucional, política, representacional; a ascensão de pensamentos liberais ortodoxos; o esquartejamento da educação e da cultura; a militarização das relações e da vida; o humano se perdendo; o artista exposto como humano; a biopoética das relações humanas.
Maria Milisavljevic ao, autora do texto, oa ladod e Lucca Simas na abertura do Transit 2018. Foto: Alexandre Dill
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