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Tremor: sobre como as Coisas Foram Chegar neste Ponto estreia hoje (17 de maio) às 20h no Teatro do Goethe-Institut, abrindo a edição 2018 do Transit. O projeto, criado pelo Goethe-Institut, financia dois criadores gaúchos a proporem encenações próprias para um mesmo texto, criado por um dramaturgo ou dramaturga alemão. Na edição de 2018, o texto escolhido foi Beben (em português, Tremor), escrito pela dramaturga e diretora Maria Milisavljevic. Patricia Fagundes e a Cia. Rústica criaram Tremor: sobre como as Coisas Foram Chegar neste Ponto (temporada de estreia hoje e amanhã), enquanto Lucca Simas e o grupojogo de experimentação cênica vão estrear Tremor (22 e 23 de maio). Os dois espetáculos voltarão ao palco do Goethe-Institut entre o final de maio e início de julho. A seguir, leia o relato de Renato Mendonça sobre o processo de criação de Tremor: sobre como as Coisas Foram Chegar neste Ponto. No dia 22 de maio, será postado o relato de Michele Rolim sobre a encenação do grupojogo para Tremor, também dentro do projeto Transit.
Tremor: sobre como as Coisas Foram Chegar neste Ponto estreia hoje (17 de maio) às 20h no Teatro do Goethe-Institut, abrindo a edição 2018 do Transit. O projeto, criado pelo Goethe-Institut, financia dois criadores gaúchos a proporem encenações próprias para um mesmo texto, criado por um dramaturgo ou dramaturga alemão.
Na edição de 2018, o texto escolhido foi Beben (em português, Tremor), escrito pela dramaturga e diretora Maria Milisavljevic. Patricia Fagundes e a Cia. Rústica criaram Tremor: sobre como as Coisas Foram Chegar neste Ponto (temporada de estreia hoje e amanhã), enquanto Lucca Simas e o grupojogo de experimentação cênica vão estrear Tremor (22 e 23 de maio). Os dois espetáculos voltarão ao palco do Goethe-Institut entre o final de maio e início de julho.
A seguir, leia o relato de Renato Mendonça sobre o processo de criação de Tremor: sobre como as Coisas Foram Chegar neste Ponto. No dia 22 de maio, será postado o relato de Michele Rolim sobre a encenação do grupojogo para Tremor, também dentro do projeto Transit.
Patricia Fagundes garantiu sua vaga no Transit 2018 sendo coerente com os 13 anos de trajetória de sua Cia Rústica. Apesar de o texto original fazer referências a games, séries de TV e elementos visuais da cultura pop, a diretora preferiu evitar projeções e recursos eletrônicos em sua encenação. Não que o grupo não lance mão desses recursos – Natalício Cavalo (2014), por exemplo, tem projeções com a função de embaralhar ficção e realidade, Mas o que marca o trabalho da Rústica é a perseguição de um teatro que instaure o estado de encontro, segundo uma expressão de Patricia, no caso a comunhão temporária mas transformadora entre palco e plateia, entre artista e espectador, entre obra e sensibilidade.
No projeto que submeteu à comissão de avaliação, Patricia definiu Tremor como um “texto alemão contemporâneo político amoroso”. No jogo sutil da Rústica, conciliar amoroso e político não se resume a um jogo de palavras, é antes uma forma de criar, viver e interferir na realidade. O site do grupo (clique aqui) defende o teatro “como experiência, como dispositivo de conexões, como máquina que provoca e administra encontros". O movimento de aproximação do público passa também pela criação de uma dramaturgia própria que incorpora experiências pessoais de Patricia e seus atores. Nessa linha, além de Natalício Cavalo, podemos citar Clube do Fracasso (2010), Cidade Proibida (2013, confira crítica no link) e Fala do Silêncio (2017, confira crítica no link).
O projeto expunha a intenção de jogar com o espectador, incentivando-o a "compor seu próprio poema", enquanto a encenação assumia que fragmentação e velocidade são formas recorrentes de nosso tempo. Em entrevista concedida a mim no final de novembro de 2017, logo depois dos primeiros encontros com vistas à montagem de Tremor, Patricia comentava que a estrutura complexa do texto de Maria, sem rubricas e misturando várias narrativas, não seria maior problema: "A narrativa linear, sim, é elitista, porque as formas populares de narrativa não são contínuas, são fragmentadas'. A proposta deixava claro: "Engrenagens expostas, do mundo e da cena, jogo revelado, ossos rasgando a carne. (...) valorizar a palavra sem deixar de explorar corporeidades intensificadas e vibrantes, como em outros espetáculos da encenadora, que investem na potência da palavra aliada a uma ética festiva e corpórea” .
O esboço de cenário apresentado (abaixo), e que pouco mudou até sua versão final, também materializava alguns dos traços que Patricia impõe às criações da Rústica. Segundo Ander Belotto (leia entrevista no final), assistente de direção de Tremor: sobre como as Coisas Foram Chegar neste Ponto, é uma marca da diretora dar vida às coisas, expor a memória das coisas, lutar para manter a memória viva: "Cada cenário utiliza algo de montagens anteriores, como se registrando um rastro que a Rústica deixa".
A identificação entre o texto e a diretora se dá de uma maneira indireta mas emocionalmente potente: Maria tem um filho, enquanto Patricia é mãe de uma menina, e as duas mulheres são praticamente da mesma geração. Além disso, a gaúcha se identifica com o tom do texto, que compara a uma "lâmina afiada, mas humanista. Vendo o caos, mas acreditando que pode haver uma saída".
O primeiro encontro de toda a equipe de Tremor: sobre como as Coisas Foram Chegar neste Ponto foi em 27 de novembro de 2017, na casa de Patricia, bairro Bom Fim de Porto Alegre. Antes disso, a diretora já tinha definido quantos e quais atores iriam trabalhar na peça. Os critérios que usou, per si, têm uma implicação importante: Tremor é um texto claramente geracional, claramente identificado com a experiência pessoal da autora, alemã de 38 anos. Mas Patricia escalou atores de três gerações distintas - Evandro Soldatelli, Priscilla Colombi e Lauro Fagundes – o que garantiu sutilezas à encenação.
Voltando ao primeiro encontro, ciente da dificuldade do texto, Patricia preparou um ambiente de descontração e desarme para enfrentar os complexos tremores de Maria. Ao som da etérea Atmosphere, de Stephen Cooper, e entre alguns goles de espumante, ela dizia “Tive uns insights. Estava procurando um tango instrumental". O grupo formou uma roda e passou a discutir o desafio. Lauro disse que o texto era ótimo, "mas como deixá-lo quente?". Evandro tentou definir o clima de Tremor: "Entre dormir e acordar. É como a porta de emergência de um avião". Patricia afirmou que o espírito da peça seria Here Comes the Sun, na versão cantada por Nina Simone.
Para quebrar o gelo, Evandro e Lauro formaram uma dupla, e Priscilla e Ander, outra. Os pares foram se alternando na leitura do texto de Maria Milisavljevic, deixando o acaso definir de quem e qual era a fala. Essa fixação acabou ocorrendo só ao longo de dezembro, e curiosamente cada ator foi se adonando suas falas naturalmente. Nesse ponto reside talvez uma das principais qualidades da encenação da Rústica: o reconhecimento e a valorização das características de cada ator como que define três amplos personagens na peça, mesmo que o conceito de personagem tenha uma aplicação complexa no caso de Tremor. Evandro Soldatelli, contemporâneo de Patricia, é experiente, tem um humor que não se furta a alguma ironia, já conhece o andar da carruagem. Priscilla Colombi é enérgica, física, incisiva como sua forma de tocar o cajón. Lauro Fagundes é afetivo, generoso e encarna uma geração ainda disponível às emoções.
Depois da leitura, se discutiu o cronograma dos trabalhos, etapa sucedida pela degustação de espumante e por discussões variadas sobre os aspectos astrológicos de todos da reunião.
Primeiro encontro: Priscilla, André, Ander, Marco, Evandro, Lauro e Patricia. Crédito Renato Mendonça
Apesar do lamentável estado de conservação que se encontra a Usina das Artes, em sua atual localização em um prédio da rua Santa Terezinha, bairro Santana de Porto Alegre, o fato de a Cia Rústica ocupar sala no local facilitou o agendamento de ensaios. O verão porto-alegrense castigava a sala sem ar condicionado decente, mas ao menos o espaço tinha a largura do palco do Teatro do Goethe-Institut, onde a peça iria entrar em cartaz.
O primeiro ensaio a que assisti foi na tarde de 15 de janeiro de 2018. Antes de passarem o tanto da peça que já estava definido, os atores relaxavam ao som de Primavera nos Dentes, do Secos & Molhados, com os versos inspiradores "Quem tem consciência para ter coragem / Quem tem a força de saber que existe / E no centro da própria engrenagem Inventa contra a mola que resiste". Patricia e seu assistente, Ander, discutiam a respiração dos atores. Ela: "Vamos buscar um fluxo". A esta altura dos ensaios, o grupo tinha vencido 20% do texto.
Em Tremor, há um diferencial em relação às outras produções da Rústica: Patricia está em cena, coisa que ela já tinha começado a fazer em alguns cabarés da Rústica mas que, efetivamente, não ocorria desde 1996, quando atuou em Abajur Lilás, dirigida por Roberto Oliveira.
No ensaio de 29 de janeiro, a encenação avançou mais um pouco. Ficou clara a importância de existir um DJ em cena (naquele momento, ainda era Virginia Cigolini, substituída depois por Ander). Dois dias depois, o aquecimento com dança expôs a importância de Marco Rodrigues, bailarino e coreógrafo do grupo My House (leia entrevista no final). Um dos momentos mais fortes da encenação foi a ainda esboçada coreografia do tema de Star Wars em pegada pancadão, em que os atores desenvolvem movimentos robóticos, oscilando de Startroopers a soldados nazistas, num ataque bem-humorado e devastador à tentação bélica e fascista. Como explicou Marco, "Patricia gosta de incorporar outras linguagens em seu trabalho. Em Tremor, há um texto muito forte em cena, mas há também o corpo que dança, e que fala".
Lauro, Evandro e Priscilla ensaiam na sala que a Rústica ocupa na Usina das Artes. Crédito André Varela
A oportunidade de assistir aos ensaios, com os atores a pouco mais de um metro de distância por vezes, certamente favoreceu a percepção de detalhes, dos quais cito um. Em algumas cenas, os atores adotam posições contritas, de recolhimento. Enquanto Priscilla espontaneamente colocava a mão sobre a região mais inferior do abdome, os dois atores colocavam a mão sobre o peito. A questão de gênero, que desemboca em duas das cenas mais potentes da peça, que discutirei em detalhes mais adiante, é uma chave para abrir Tremor, explorando as origens mais profundas da violência e da opressão.
Quando o grupo pôde ocupar o palco do Goethe-Institut para os ensaios, a peça se transformou. Agora com a presença de alguns convidados, que ficavam após o final do ensaio para dar suas impressões, o Tremor da Rústica foi encontrando sua real dimensão, seu som, seu volume, mesmo faltando algumas poucas cenas para fechar a encenação. Avessa a maiores formalidades, Patricia evitava o modelo "alguém dando seu depoimentos/os outros ouvindo". Incentivava sutilmente a formação de pequenos grupos, que se intercambiavam e iam trocando ideias, impressões e sugestões.
A alguns dia da estreia, uma surpresa: Virginia Cigolini sai do elenco. Ander Belotto, que fazia a iluminação e a assistência de direção, é convocado a substituí-la. A decisão é compreensível: Ander domina o texto e as marcações de cena – terá apenas de se haver "apenas" com atuar e manejar a trilha sonora da peça. Carol Zimmer assumiu a iluminação. O que mudaria na montagem? Certamente, a presença esguia e andrógina de Viriginia embutia um quê de estranhamento nas cenas que participava, mas o próprio Ander comentou, na véspera da estreia, que ele não tinha tempo para especular sobre mudanças de tom ou coisas assim – estava concentrado em acertar as suas partes. De toda forma, como a própria Patricia Fagundes defende, tudo deve ser incorporado à encenação – não há, afinal, maiores fronteiras entre a vida e a arte.
Lauro, Priscilla, Ander, Patricia, Virginia, Marco e Evandro. Foto de André Varela
A alguns dias da estreia, o elenco já comentava estar ansioso para enfrentar a plateia. Considerei que minha colaboração no esforço final de lapidar a encenação seria oferecer uma reflexão por escrito, indicando cenas que avaliava decisivas, apontando carências, tecendo considerações sobre o texto original da peça. A seguir, trechos desse documento que ofereci ao grupo em 11 de maio.
"... quero começar falando do texto da Maria Milisavljevic. Como a Patricia, também gostei do texto quando o li já na primeira vez. Mas fiquei tenso com o final do texto, que me pareceu sentimental demais. Depois, percebi que esse final está de acordo com Maria e, principalmente, com a imagem que ela faz da geração dela (alemã, 30 e poucos). É um texto geracional, de jovens adultos que já encontraram o fogo ardendo, e não sabem como acender. De pessoas que colaboram com as melhores causas de todo mundo, mas não se dispõem a ajudar uma velha no fim da rua. Que preferem não se envolver, que deixam a democracia representativa resolver seus problemas. Que parecem bonecos em um mundo de manipulação, em que até o fantasma do nazismo é usado para manipulação (Maria não chega a explicitar isso, mas insinua). Que são imaturos, e acreditam em finais felizes e entregues por delivery. O problema é que a realidade chega à Europa boiando nas praias do Mediterrâneo. Maria descreveu o ponto de partida da peça em um dia de sol em que ela viu refugiados perto de sua casa, quando ela estava acompanhada de sua filha. Essa é a chave, e é o que vai encaminhar o final da peça. Ser um adulto jovem desorientado é uma coisa, mas ser mãe ou pai, ter a responsabilidade de ensinar como acender o fogo e não saber como se faz é outra coisa. Chega a dar um tremor de nervoso tal a responsabilidade. E a expressão “partitura do nada” chega a assombrar. A estrutura da peça nem é tão subversiva – ela vai ancorando a narrativa (ou as várias narrativas) com os o Homem de Ulro e seus homenzinhos coloridos corporificando os principais envolvidos no capitalismo (soldados, operários, negociantes, sonhadores...). Mas destaco três cenas que se potencializaram a partir da encenação e dos atores da Rústica. A primeira são como três: os “monólogos” em que Evandro, Priscilla e Lauro consagram as “personas” que cada um assume na peça. Evandro com o lego, falando do metal derretido, do poder do fogo, da casa dos pais. Ele é o cínico, o vivido, o que se responsabiliza por aconselhar. Priscilla, atlética e explosiva, faz da cena de seu dia de cão, em contraste com a cena em que faz a clara exigência de que podemos, sim, nos dar o direito de estarmos deprimidos, cria mudanças de ritmo indispensáveis. Lauro, amoroso e otimista, tem na cena quando chega a agradecer ao estuprador um extremo emocional muito importante. Sobre esse trio, vale a pena apontar como funciona bem colocar três gerações para atuarem em um texto que é claramente de uma geração. Esse é um fato que se coloca para o espectador desde o início da peça, e que acredito potencializa a obra de Maria. A segunda é duas: coladas, estão uma cena física e outra altamente emocional. E fica claro que o reinado do macho é que levou as coisas a chegarem a esse ponto. Lauro e Evandro estão envolvidos numa perseguição dinâmica, correndo pela plateia. Logo depois, Patricia e Priscilla, praticamente imóveis, falam da maternidade, do horror da violência, do desperdício de uma vida. Funciona como um binário: os homens envolvidos em jogos de guerra, as mulheres acolhendo e repercutindo emocionalmente. Cada cena é ótima, mas as duas consecutivamente são uma porrada. A terceira é quando Patricia está ao lado do público, e finalmente a encenação se derrama emocionalmente para a plateia. Sim, somos todo um, aqui e agora – no teatro, pelo menos. É algo que Patricia tinha falado na entrevista para mim lá em dezembro – “O texto tem de sair do corpo e do coração, tem de remeter ao aqui e agora, tem de se irradiar dos atores para o público”. Na verdade, a peça é feita de pequenos encantamentos. Como as coreografias, especialmente a do pancadão Darth Vader, que com habilidade condena o belicismo e o fascismo de bando com uma coreografia que lembra o passo de ganso nazista e as grandes manifestações da Alemanha de Hitler. As coreografias, acima de tudo, enfatizam o coletivo, traço sutil, mas fundamental da montagem. É que não há salvação sem solidariedade, sem olhar para o outro, sem levá-lo em conta. A encenação proposta por Patricia é sempre por aí: feita de apoios, de proximidade e de afeto. Descobri isso quando acompanhei os minutos finais do aquecimento do grupo uma noite no Goethe. Patricia orientava para os atores reagirem imediatamente a comandos, mas prestando atenção a seus colegas, buscando a unidade, ou a pluralidade orgânica, para ser mais exato. A linha da Rústica – teatro é jogo – cabe direitinho no texto de Maria. Voltando a esse assunto, percebo o início da peça quase como se fossem crianças (os alemães de 30 e poucos) brincando num parque, aparentemente seguros, confiando sua sorte ao Homem de Ulro. O rearranjo do cenário com cubos habilmente remete ao Lego e aos jogos infantis. É como se fosse um Jogos Mortais na Hora da Sesta. Enxergo uma geração imatura. Com efeito, na avaliação das propostas do edital do Transit, gostei muito da proposta “psicanalítica” de Julio e Catarina Conte que colocava um balanço em cena. (...) Difícil ter uma impressão mais distanciada de uma montagem que acompanho de perto – já sei até de cor alguns trechos! Mas acho que uma dúvida de Lauro confessou naquele primeiro encontro na casa de Patricia - “Mas como deixar esse texto quente?” - foi resolvida a contento. O que me deixa apreensivo é o final da peça. A resolução dramaturgicamente ingênua da cena do aperto de mão é complicada. Felizmente, a cena final com todos juntos, lado a lado, repetindo uma formação que ocorreu no início da peça, mas agora cerrando os olhos, buscando isolar-se das distrações do contemporâneo, e principalmente tendo coragem de encarar a escuridão e o “por fazer”, é uma resolução saudavelmente esperançosa, desbastando o otimismo edulcorado de Maria. Mas a cena da reconciliação do soldado e da mãe me parece estranha – tão importante e feita numa posição lateral do palco, sobre um praticável. Era algo que eu gostaria de ver em detalhes, testemunhar esse encontro decisivo e surpreendente em cada mínimo detalhe. Outra cena que me incomoda é a recorrência da interrupção seja com a sequência de Friends, com as balas e tal. Me parece um recurso dramático perigoso da Maria – seu uso no início quebra a tensão e explicita a presença dos games e sua realidade virtual, mas depois parece repetitivo. A última intervenção, principalmente, me soa como um maneirismo dramatúrgico. Gosto muito de assistir a “Tremor”. Como o Evandro descreveu, é “Entre dormir e acordar”, mas principalmente é um teatro tecnicamente rigoroso e emocionalmente correto (pelo menos para mim). Patricia descreveu: “Lâmina afiada, mas humanista. Vendo o caos, mas acreditando que pode haver uma saída.” E acredito que o fato de não haver maiores recursos de mídia em cena, fugindo à solução mais imediata, nos remete a uma saída que virá dos nossos corpos e emoções. Um teatro feito assim, por si só, já materializa a solução que Maria tanto procura ao longo de “Tremor”.
"... quero começar falando do texto da Maria Milisavljevic. Como a Patricia, também gostei do texto quando o li já na primeira vez. Mas fiquei tenso com o final do texto, que me pareceu sentimental demais. Depois, percebi que esse final está de acordo com Maria e, principalmente, com a imagem que ela faz da geração dela (alemã, 30 e poucos). É um texto geracional, de jovens adultos que já encontraram o fogo ardendo, e não sabem como acender. De pessoas que colaboram com as melhores causas de todo mundo, mas não se dispõem a ajudar uma velha no fim da rua. Que preferem não se envolver, que deixam a democracia representativa resolver seus problemas. Que parecem bonecos em um mundo de manipulação, em que até o fantasma do nazismo é usado para manipulação (Maria não chega a explicitar isso, mas insinua). Que são imaturos, e acreditam em finais felizes e entregues por delivery.
O problema é que a realidade chega à Europa boiando nas praias do Mediterrâneo. Maria descreveu o ponto de partida da peça em um dia de sol em que ela viu refugiados perto de sua casa, quando ela estava acompanhada de sua filha. Essa é a chave, e é o que vai encaminhar o final da peça. Ser um adulto jovem desorientado é uma coisa, mas ser mãe ou pai, ter a responsabilidade de ensinar como acender o fogo e não saber como se faz é outra coisa. Chega a dar um tremor de nervoso tal a responsabilidade. E a expressão “partitura do nada” chega a assombrar.
A estrutura da peça nem é tão subversiva – ela vai ancorando a narrativa (ou as várias narrativas) com os o Homem de Ulro e seus homenzinhos coloridos corporificando os principais envolvidos no capitalismo (soldados, operários, negociantes, sonhadores...). Mas destaco três cenas que se potencializaram a partir da encenação e dos atores da Rústica.
A primeira são como três: os “monólogos” em que Evandro, Priscilla e Lauro consagram as “personas” que cada um assume na peça. Evandro com o lego, falando do metal derretido, do poder do fogo, da casa dos pais. Ele é o cínico, o vivido, o que se responsabiliza por aconselhar. Priscilla, atlética e explosiva, faz da cena de seu dia de cão, em contraste com a cena em que faz a clara exigência de que podemos, sim, nos dar o direito de estarmos deprimidos, cria mudanças de ritmo indispensáveis. Lauro, amoroso e otimista, tem na cena quando chega a agradecer ao estuprador um extremo emocional muito importante.
Sobre esse trio, vale a pena apontar como funciona bem colocar três gerações para atuarem em um texto que é claramente de uma geração. Esse é um fato que se coloca para o espectador desde o início da peça, e que acredito potencializa a obra de Maria.
A segunda é duas: coladas, estão uma cena física e outra altamente emocional. E fica claro que o reinado do macho é que levou as coisas a chegarem a esse ponto. Lauro e Evandro estão envolvidos numa perseguição dinâmica, correndo pela plateia. Logo depois, Patricia e Priscilla, praticamente imóveis, falam da maternidade, do horror da violência, do desperdício de uma vida. Funciona como um binário: os homens envolvidos em jogos de guerra, as mulheres acolhendo e repercutindo emocionalmente. Cada cena é ótima, mas as duas consecutivamente são uma porrada.
A terceira é quando Patricia está ao lado do público, e finalmente a encenação se derrama emocionalmente para a plateia. Sim, somos todo um, aqui e agora – no teatro, pelo menos. É algo que Patricia tinha falado na entrevista para mim lá em dezembro – “O texto tem de sair do corpo e do coração, tem de remeter ao aqui e agora, tem de se irradiar dos atores para o público”.
Na verdade, a peça é feita de pequenos encantamentos. Como as coreografias, especialmente a do pancadão Darth Vader, que com habilidade condena o belicismo e o fascismo de bando com uma coreografia que lembra o passo de ganso nazista e as grandes manifestações da Alemanha de Hitler. As coreografias, acima de tudo, enfatizam o coletivo, traço sutil, mas fundamental da montagem. É que não há salvação sem solidariedade, sem olhar para o outro, sem levá-lo em conta.
A encenação proposta por Patricia é sempre por aí: feita de apoios, de proximidade e de afeto. Descobri isso quando acompanhei os minutos finais do aquecimento do grupo uma noite no Goethe. Patricia orientava para os atores reagirem imediatamente a comandos, mas prestando atenção a seus colegas, buscando a unidade, ou a pluralidade orgânica, para ser mais exato.
A linha da Rústica – teatro é jogo – cabe direitinho no texto de Maria. Voltando a esse assunto, percebo o início da peça quase como se fossem crianças (os alemães de 30 e poucos) brincando num parque, aparentemente seguros, confiando sua sorte ao Homem de Ulro. O rearranjo do cenário com cubos habilmente remete ao Lego e aos jogos infantis. É como se fosse um Jogos Mortais na Hora da Sesta. Enxergo uma geração imatura. Com efeito, na avaliação das propostas do edital do Transit, gostei muito da proposta “psicanalítica” de Julio e Catarina Conte que colocava um balanço em cena.
(...)
Difícil ter uma impressão mais distanciada de uma montagem que acompanho de perto – já sei até de cor alguns trechos! Mas acho que uma dúvida de Lauro confessou naquele primeiro encontro na casa de Patricia - “Mas como deixar esse texto quente?” - foi resolvida a contento.
O que me deixa apreensivo é o final da peça. A resolução dramaturgicamente ingênua da cena do aperto de mão é complicada. Felizmente, a cena final com todos juntos, lado a lado, repetindo uma formação que ocorreu no início da peça, mas agora cerrando os olhos, buscando isolar-se das distrações do contemporâneo, e principalmente tendo coragem de encarar a escuridão e o “por fazer”, é uma resolução saudavelmente esperançosa, desbastando o otimismo edulcorado de Maria.
Mas a cena da reconciliação do soldado e da mãe me parece estranha – tão importante e feita numa posição lateral do palco, sobre um praticável. Era algo que eu gostaria de ver em detalhes, testemunhar esse encontro decisivo e surpreendente em cada mínimo detalhe.
Outra cena que me incomoda é a recorrência da interrupção seja com a sequência de Friends, com as balas e tal. Me parece um recurso dramático perigoso da Maria – seu uso no início quebra a tensão e explicita a presença dos games e sua realidade virtual, mas depois parece repetitivo. A última intervenção, principalmente, me soa como um maneirismo dramatúrgico.
Gosto muito de assistir a “Tremor”. Como o Evandro descreveu, é “Entre dormir e acordar”, mas principalmente é um teatro tecnicamente rigoroso e emocionalmente correto (pelo menos para mim). Patricia descreveu: “Lâmina afiada, mas humanista. Vendo o caos, mas acreditando que pode haver uma saída.” E acredito que o fato de não haver maiores recursos de mídia em cena, fugindo à solução mais imediata, nos remete a uma saída que virá dos nossos corpos e emoções. Um teatro feito assim, por si só, já materializa a solução que Maria tanto procura ao longo de “Tremor”.
Quem me lembrou foi a própria Patricia Fagundes: uma das primeiras matérias em jornal que o trabalho dela recebeu foi em maio de 2004, escrita por mim, com a manchete “Shakespeare é pop”, dedicada à montagem dela para Macbeth. O pop ia por conta de celulares em cena e de pequenas estruturas tubulares que se deslocavam disseminando as lutas de poder pelo palco. Mas se justificava também pela empatia que o espetáculo de fato estabeleceu com público e o compromisso de atualizar um texto do início do século 17 com a realidade imediata. Registro isso para explicitar a intimidade que tenho com a Cia Rústica e com o trabalho de Patricia – ah, também a vi atuando em 1996.
Essa proximidade auxilia ou prejudica a função de crítico interno? Sempre ajuda. Especialmente porque se pode utilizar a dimensão tempo para acompanhar quesitos como coerência artística e construção de estilo, percebendo bem-vindas rupturas e desvios de rota na busca de desenvolvimento. Os espetáculos da Rústica, especialmente Sonho de uma Noite de Verão e A Megera Domada, me seduziram por fazer do teatro uma festa comunitária. Também me aproximo muito quando o grupo trafega por uma sensibilidade em que narrativa, memória e sentimentos interagem, subvertem-se e se transformam, como em Fala do Silêncio e em Natalicio Cavalo. Acredito que Patricia Fagundes é consciente de que arte, por princípio, é ilusão, é recriação. E, de alguma forma, é uma releitura da realidade que pode ser transformadora ou simplesmente pacificadora. Por isso sua aposta no jogo – mas um jogo às claras, abrindo mão do foro privilegiado do palco. Um jogo em que todos os jogadores, estejam em cena ou não, assumem riscos.
E chegamos ao Tremor. Não por acaso, um texto que lida com memórias, propõe embaralhamento de narrativas, sob carga emocional alta, com um compromisso político evidente. O texto vem ao encontro do perfil do grupo. Como escrevi no relato acima, a decisão de abrir mão de maiores recursos de mídia per si já se constitui uma resposta aos problemas que a contemporânea Maria nos bombardeia. Deverá vir do sentimento de coletivo, da basicalidade dos contatos físicos e emocionais que poderemos superar tantos e tão dissimulados dilemas. Pode parecer ingênuo, e o final de Tremor se aproxima perigosamente disso, mas uma das principais falas de Patricia – e da peça - é curta e decisiva. Quando interrogada se é mesmo possível uma conciliação, ela diz: “É. Simples assim”. A resposta é sim.
Em termos de dia a dia do trabalho, reconheci um grupo talentoso, disciplinado e perfeccionista. Um perfeccionismo que atingia até a uva do vinho com que se celebraria mais um dia de trabalho, o que considero um cuidado muito procedente. A música é onipresente, seja nas reuniões, seja no aquecimento ou na “dispersão” – sugeri a eles que elaborassem uma playlist e a divulgassem nas redes. Elza Soares, Secos & Molhados, Fernanda Abreu e rappers que não identifiquei estariam no repertório.
Também me impressionou a presença na equipe de jovens como Ander Belotto, Lauro Fagundes, André Varela e Virginia Cigolini, certamente facilitada pela intensa atividade de Patricia Fagundes no campo universitário. Essa mescla de experientes com artistas mais jovens é fundamental para a vitalidade da Rústica. Por fim, registro que é a segunda vez que cumpro a tarefa de acompanhar um processo de criação, sempre dentro do projeto Transit. Em 2017, segui a encenação que Camilo de Lélis propôs para o texto As Trevas Risíveis, de Wolfram Lotz. Que esta experiência se consolide e multiplique.
Lauro Fagundes, Priscilla Colombi, Patricia Fagundes e Evandro Soldatelli no Goethe, foto Adriana Marchiori
Encenação: Patricia Fagundes Elenco: Priscilla Colombi, Lauro Fagundes e Evandro Soldatelli, com as participações especiais de Patrícia Fagundes e Ander Belotto Coreografias e provocações corporais: Marco Rodrigues (My House) Assistência de direção: Ander Belotto Cenografia: Rodrigo Shalako Iluminação: Carol Zimmer Paisagens e seleção musical: Virginia Anderle Cigolini e equipe Trilha sonora original: Leonardo Machado Criações percussivas: Priscilla Colombi. Vozes: André Varela, Dale Althea Heinen, Leonardo Machado, Mirna Spritzer, Patrícia Fagundes. Colaboração no figurino: Heinz Limaverde Criação gráfica e assistência de produção: André Varela Direção de Produção: Patrícia Fagundes Crítico interno: Renato Mendonça / AGORA Crítica Teatral Assessoria de Imprensa: Léo Sant’Anna Fotografia: Adriana Marchiori Realização: Goethe-Institut Porto Alegre, Sesc/RS, Cia Rústica de Teatro Correalização: Agora Crítica Teatral e Grupo My House Apoio: PPGAC (Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas -UFRGS) e DAD (Departamento de Arte Dramática – UFRGS)
Patricia Fagundes e sua filha em um intervalo dos ensaios no Goethe. Crédito da foto: André Varela
Diretora da Cia. Rústica, produtora, pesquisadora e professora do Departamento de Arte Dramática e na Pós-Graduação em Artes Cênica da UFRGS. Também é Doutora em Ciências do Espetáculo pela Universidade Carlos III, de Madri, e Mestre em Direção Teatral pela Middlesex University, de Londres. Alguns espetáculos: Fala do Silêncio (Prêmio Braskem Melhor Espetáculo e Açorianos Melhor Trilha Sonora 2017), Cidade Proibida (Braskem Melhor Espetáculo pelo Júri Popular 2015), Natalício Cavalo (Braskem Melhor Espetáculo 2013), O Fantástico Circo Teatro de um Homem Só (Açorianos Melhor Direção 2011), Sonho de uma Noite de Verão (Açorianos e Braskem Melhor Direção e Melhor Espetáculo 2006), entre outros. Foi membro fundador do Depósito de Teatro.
Podes falar um pouco do teu processo de criação?
PATRICIA - A primeira providência que tomo é definir o número de atores e quais são eles. Escolhi esses atores porque são cheios de ideias. Os ensaios já incluem jogos que proponho. Gero os gatilhos e depois organizo. Procuro surpreender os atores com algo sensível ou divertido. Mas às vezes os atores querem um ensaio mais convencional, para firmar as cenas, para se sentirem mais seguros. Crio muito a partir do que os atores dão e sugerem. A encenação é criada ao longo dos ensaios. O importante é ouvir o acaso e incorporá-lo. Tudo é material de criação: o palco, o prazo, o número de atores, etc. O processo é uma aventura!
Para que serve o teatro?
PATRICIA - Teatro salva da caretice, da desesperança, da violência, da mesmice, da lama da vida. Quero que emocione, que as pessoas se vejam. Que se crie o estado de encontro.
Foi bolsista de Patricia Fagundes quando estava cursando Direção Teatral no DAD/UFRGS. Foi assistente de direção dela em Natalicio Cavalo (2013), atua em Cidade Proibida e dança em Feito Criança. Já fez produção e operação de som e luz em montagens da Rústica.
Qual tua opinião sobre o texto de Tremor?
ANDER - Na primeira vez que li, achei ótimo. Mas, a partir da quarta vez que li, me assustava com as possibilidades, com os links que se abriam. Já pensei em cinco encenações diferentes, com cinco focos, com cinco possibilidades de narrativa. É um texto autenticamente de teatro, provavelmente porque Maria, além de dramaturga, é atriz e diretora.
Como foi ser assistente de direção? A diretora está em cena – isso muda a tua função?
ANDER – Já vão cinco anos desde Natalicio Cavalo. Patricia e eu estamos mais próximos, eu estou um pouco menos cru do que antes... Claro que a ajudo com um olhar externo, mas minha tarefa é cuidar de que a ideia geral de encenação, definida por ela, se mantenha.
O fato de ser bailarino tem influência?
ANDER – Talvez por isso, sou perfeccionista com os movimentos. Quando as coisas são simples, aí que tem de ser bem executadas. Isso é muito importante na peça. Com a Patricia, a palavra explode, mas o corpo também tem voz. É uma busca dela: aproximar corpo e palavra, às vezes superpondo-os.
Lidera desde 2007 o grupo My House. Ao lado de Gabriela Chultz, dirige o My House – Your Dance Studio desde o ano passado. Dividiu a direção com Patricia Fagundes na oficina Shakespeare & Hip Hop (2017). Trabalhou com o corpo dos atores em Fala do Silêncio. Dança em Feito Criança.
Como foi sua aproximação com Tremor?
MARCO - O texto é atual e pop. Mas também é pesado e difícil. Minha ansiedade era: “Onde vai entrar a dança?” Mas deu tudo certo: Patricia gosta de incorporar outras linguagens. Há um texto muito forte em cena, mas há também um corpo que dança.
E o trabalho com os atores?
MARCO - Através de exercícios, levei os atores à exaustão. Só se conhece o corpo na exaustão. A partir daí se seleciona o que é mais adequado. Trabalhei as diferença de corpos, as diferentes bagagens de cada um. Então fui lapidando e estabelecendo coreografias.
Alguma técnica em especial?
MARCO – Já que o texto fala do jogo Minecraft, incorporei movimentos robóticos e de videogame. Com a técnica do Tutting, criamos imagens geométricas que se formam a partir dos dedos, mãos e braços. Com a técnica do Robot, obtivemos gestos robóticos. Na cena dos Startroopers, usei elementos de funk, "quadradinho" e passos sociais de Hip-hop.
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