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Comecei a acompanhar o processo de As Trevas Ridículas em janeiro de 2017. Uma vez por semana com meu bloco e caneta eu estava no ensaio do grupo na sala 309 da Usina do Gasômetro - a qual eles ocupam até o momento (estão prestes a sair, pois a Usina do Gasômetro vai fechar para reformas, e eles ainda não têm para onde ir). No local, não há ar condicionado - infelizmente, esse item é um luxo para os teatreiros.
Mas digo isso porque o calor dos meses de janeiro, fevereiro e março era excessivo e invadia a sala. Isso acabou sendo fundamental para a atmosfera do espetáculo. A sensação era de realmente habitar uma selva, tal como o alemão Wolfram Lotz ambienta sua peça As Trevas Risíveis.
Inspirado em Coração das Trevas, romance de Joseph Conrad, em Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola, e também em fatos reais de grande repercussão internacional, como o do tribunal alemão que julgou o primeiro caso de pirataria em quase 400 anos, a peça de Lotz conta a história de dois militares que saem em busca do primeiro-tenente Deutinger, que teria enlouquecido.
No fim das contas, essa história é um pretexto para falar de algo maior: o reconhecimento do outro.
Desde o início do processo de criação estava muito presente a pergunta: “Por que eu quero montar essa peça? Será que eu mesmo me reconheço?”, disse Alexandre Dill, em uma das nossas conversas.
A peça foi também para o diretor e atores um reconhecimento do lugar de fala de cada um. Alexandre Dill, Vicente Vargas, Guilherme Conrad, Lucas Prado, Frederico Vittola e Gustavo Susin (todos já haviam trabalho com Dill, exceto Lucas, que faz sua estreia profissional nos palcos) fizeram dos ensaios um reconhecimento de sua condição de homem branco, racista e machista, assim como o próprio autor faz na escrita da peça. Lotz é questionado por sua mãe sobre a ausência de mulheres na peça, em outro momento se pergunta sobre uma ação do seu pai: transformar um legume em um pênis gigante e sair gritando que aquilo é uma coisa dominadora como um avião.
Para Dill, os atores precisavam ir para a cena se reconhecendo, e isso também passava pelos exercícios do processo de criação da peça. Uma das dinâmicas, por exemplo, incluía contar piadas de loiras e de negros. “Esses exercícios traziam o constrangimento. Eu tinha dificuldade de desenvolver, e isso apareceu depois na minha reflexão.”, contou o ator Vicente.
Um homem nunca vai ver e sentir como uma mulher, um branco nunca vai ver e sentir como um negro. Mas é possível e desejável que este homem e este branco, por mais que seja sempre insuficiente, façam um movimento de escuta e “reparação” do outro.
Isso acompanhou a forma de contar a história de Lotz e o processo de criação desse grupo, fato que foi fundamental para que o público pudesse entrar na atmosfera do texto.
A questão não era reafirmar estereótipos e, sim, questioná-los e tensioná-los não só para o público, mas para si mesmos. “É um texto de reconhecimento também do pós-colonialismo, e nós latino-americanos ainda somos coloniais, não reconhecendo esse processo. Enquanto não reconheceres o processo de colonialismo, tu não consegues discutir o pós-colonialismo”, disse Alexandre Dill.
Cinco homens brancos no palco. O que isso tem a dizer?
Em um encontro Dill me disse: “os homens é que fazem a guerra, em qualquer âmbito. Negros, mulheres e oprimidos levantam guerras de resistência, homens brancos héteros levantam guerras de dominação”.
Assim como o autor, Dill opta por colocar em cena cinco homens brancos. “Se eu colocasse uma mulher, todo o elenco teria de ser feminino. No caso de escalar um negro, todos os atores deveriam ser negros, porque senão eu estaria usando de um clichê para tentar criticar um clichê, daí não faz muito sentido”,afirmou Dill.
Também vale mencionar que, se o elenco era todo masculino, o processo de criação contou com a participações preciosas de mulheres, como a direção musical de Bibiana Petek, a preparação vocal de Lígia Motta, a assessoria de texto de Giorgia Fiorini e a colaboração de Jezebel de Carli.
Dill, apesar de ser um jovem diretor, 33 anos, já tem uma assinatura. Além dessa preocupação de refletir sobre o conteúdo, há também, e na mesma proporção, uma preocupação na forma de dizer esse conteúdo. Seus espetáculos transcendem a ideia do texto, criando e provocando novas imagens.
Muitas das cenas da peça, Dill já tinha prontas de acordo com a sua concepção, e os atores executavam tornando o movimento orgânico e emprestando personalidade ao personagem. Em outras cenas, ele pedia para que os atores “gerassem material”, e ele ia lapidando. Mas essa forma de criar imagens se dava quase sempre a partir do corpo dos atores, do que do uso de cenário e adereços. “Não foi menos desafiador, ao contrário do que parece. Muitas vezes, quando tu diminuis do macro para o micro, colocando certa delimitação na zona criativa, se abre um universo inteiro daquela especificidade para ser trabalhada. Então eu acho que esse processo contribui para o espetáculo como um todo, inclusive para nós como atores”, diz Frederico.
Antes de começar o ensaio havia sempre uma série de aquecimentos que incluía, em boa parte, exercícios físicos de resistência e precisão, o que acabou gerando na cena uma presença marcante da fisicalidade dos atores. Lembrando que isso é uma constante no trabalho do Alexandre Dill, que inclui no seu currículo os espetáculos de dança Play Beckett e Fauno (montagem na qual ele recebeu os prêmios Açorianos de Dança de direção e cenografia em 2013).
Esse estado de corpo presente dos atores, criado muito a partir dos exercícios, também acontecia porque desde o começo havia uma série de elementos dados a eles. Dill é um diretor que pensa o espetáculo em rede. Os atores trabalhavam com a trilha sonora da peça e muito cedo também com o cenário, que é um contêiner – o maior símbolo de transporte do mundo globalizado.
Comparado a outros trabalhos do grupo - inclusive de autores alemães como Medeamaterial, de Heiner Muller, e A Noite Árabe, de Roland Schimmelpfennig, essa encenação é bem mais textual, mas houve um cuidado para que ela não fosse apenas verborrágica. “Teatro é comunicação, e às vezes a gente perde de vista todas as formas que um corpo usa para se comunicar. Não é só a palavra, não é só a voz”, comentou Lucas durante uma entrevista.
Os atores também ficaram livres para propor um estranhamento na cena. Nem sempre o que era falado correspondia à ação. Como neste caso: “Eu dei como recompensa um amendoim ao pássaro arrepiado”, diz Frederico em uma das cenas. Neste caso, o pássaro era o ator Guilherme, e o biscoito era um cigarro.
O GRUPOJOGO com este trabalho consegue contar uma história sem abrir mão da estética. Fruto do seu processo de criação, que soube dar a ambos a mesma importância.
Este texto é uma das etapas do projeto TRANSIT. Idealizado pelo Goethe-Institut Porto Alegre para estabelecer trocas entre continentes, estéticas e gerações. Para o projeto, foram convidados Camilo de Lélis e Alexandre Dill para encenarem separadamente As Trevas Risíveis, de Wolfram Lotz pela primeira vez em palcos brasileiros. Considerado uma das revelações da dramaturgia e da poesia alemãs, Lotz, 35 anos, foi escolhido Dramaturgo do Ano de 2015 na Alemanha justamente por esta obra.
O AGORA participou do projeto. Nas Sombras do Coração, e de As Trevas Ridículas. Renato Mendonça e eu acompanhamos o processo de criação dos dois espetáculos, Mendonça de Nas Sombras do Coração, de Camilo de Lélis, e eu de As Trevas Ridículas, de Alexandre Dill. Também mediamos o debate do Projeto que contou com a presença dos diretores e da crítica alemã Dorothea Marcus.
AS TREVAS RIDÍCULAS
Texto: Wolfram Lotz
Direção: Alexandre Dill.
Intérpretes: Vicente Vargas, Guilherme Conrad, Lucas Prado, Frederico Vittola e Gutavo Susin
Direção Musical: Bibiana Petek
Preparação Vocal: Lígia Motta.
Desenho de Lucas: Lucca Simas
Figurino: Manu Menezes
Cenografia: Reynaldo Netto
Cenotécnico: Rodrigo Shalako
Colaboração: Jezebel de Carli
Arte Gráfica: Késsio Guerreiro.
Fotos e Vídeos: Pedro Mendes.
Assessoria de Textos: Giorgia Fiorini
Produção: GrupoJogo de experimentação Cênica
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