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O premiado texto As Trevas Risíveis, do dramaturgo alemão Wolfram Lotz, fará sua estreia em palcos brasileiros durante o 12º Festival Palco Giratório SESC/POA, no final de maio, dentro do projeto TRANSIT. A iniciativa é do Goethe-Institut, em parceria com o AGORA CRÍTICA TEATRAL e o Palco Giratório.
O projeto TRANSIT convocou dois diretores brasileiros para encenarem separadamente o texto de Lotz. A montagem de Alexandre Dill, batizada de As Trevas Ridículas, estreará em 23 e 24 de maio. A direção de Camilo de Lélis para o texto, com o nome Nas Sombras do Coração, estará em cartaz nos dias 27 e 28 de maio. As duas temporadas serão no Teatro do Goethe-Institut Porto Alegre.
Os editores do AGORA, Michele Rolim e Renato Mendonça, estão acompanhando os processos de criação dos dois espetáculos e postarão seus relatos e reflexões no site.
Wolfram Lotz, 35 anos, é uma das revelações da dramaturgia e da poesia alemãs. As Trevas Risíveis, escrito originalmente na forma de radioteatro, valeu a ele a escolha como Dramaturgo do Ano na Alemanha em 2015.
Confira abaixo a entrevista que Lotz concedeu ao site AGORA, via email. Entre os assuntos abordados, o desafio de reconhecer e compreender a alteridade de outros, o incentivo a que artistas recriem radicalmente as obras dele e os vários caminhos que o teatro pode trilhar na busca de uma ação política mais consequente.
AGORA – O texto As Trevas Risíveis expõe nossa incapacidade de aceitar aqueles que não vivem de acordo com os padrões ocidentais. Parafraseando Sartre: "O inferno são os outros que não conhecemos". Esse problema tem solução? O teatro pode ajudar a nos conhecermos?
WOLFRAM LOTZ - Sim. Mas não adianta acreditar que compreender os outros é suficiente. Porque o ato de compreender, em essência, visa sempre desvelar o desconhecido, para em seguida revelar que esse, afinal, não é realmente diferente do que nos é próprio. Na verdade, esse esforço pode funcionar e até ser adequado, mas só até determinado ponto, pois nem tudo o que parece diferente é de fato diferente. O problema está naquelas coisas que são realmente diferentes, que de fato não podem ser entendidas a partir da nossa própria experiência cultural. E justamente quando apostamos na compreensão como solução para os problemas, no reforço daquilo que se tem em comum, acabamos produzindo, com respeito às coisas realmente "desconhecidas", uma relação mais fortemente violenta. Aquilo que a compreensão, com base em alguma forma de similaridade, não consegue equacionar, precisa ser combatido de forma ainda mais dura. Eu acho que essa problemática é muito subestimada.
A peça expõe isso literariamente: a verdadeira questão seria aprender a lidar melhor com aquilo que para a própria pessoa permanece na escuridão, que não pode ser apropriado através da compreensão. É preciso aceitar que persista um resíduo que não deixa de ter suas justificativas, mesmo que não se tenha acesso a ele. É preciso aceitar essa escuridão. Precisamos aprender a viver com ela porque ela é o desconhecido, e é somente dessa maneira que podemos lidar com o desconhecido sem que se instaure uma relação de violência. As Trevas Risíveis, em seu percurso cênico, reflete isso desde a macroesfera global até as relações interpessoais concretas e, por fim, na relação da própria pessoa consigo mesma, numa região à qual não temos acesso, que não compreendemos – constantemente somos "desconhecidos" para nós mesmos.
Foi isso o que eu tentei colocar em ação, manifestar na minha peça. Se, no final das contas, tem alguma utilidade eu não sei, mas espero que sim.
AGORA – A origem de As Trevas Risíveis foi o processo contra 10 piratas somalis em Hamburgo no ano de 2010. Foi o primeiro processo deste tipo em 400 anos. A realidade está ficando cada vez mais próxima da ficção?
LOTZ - Acho que não se pode dizer que a realidade esteja cada vez mais próxima da ficção. Realidade e ficção, em qualquer época, por várias vezes andaram muito próximas. Muito mais importante do que isso me parece o absurdo que é um processo como esse, em que um tribunal, para condenar, finge que compreende aquele que será condenado. O tribunal precisa se apropriar das circunstâncias para poder aplicar o "direito" sobre alguém. E, neste caso, isso é claramente uma afirmação insustentável - e possivelmente, em última análise, nunca será sustentável.
Para deixar mais claro, vou contar algo que aconteceu durante o julgamento. Um dos acusados identificou-se perante o tribunal com seus dados pessoais, inclusive com seu local de nascimento. O tribunal solicitou ao Ministério das Relações Exteriores que verificasse se os dados eram verdadeiros. O órgão respondeu que o local declarado não existiria na Somália. Quando esta informação foi anunciada no tribunal, houve contestação de parte do auditório, porque um dos espectadores havia localizado o local no Google Maps. O que, logicamente, não quer dizer nada sobre a realidade do lugar, que é apenas um lugar no Google Maps! Mas se é evidente que não se consegue nem esclarecer com segurança se uma localidade existe, como se pode, então, pretender saber alguma coisa sobre a realidade de lá, sobre as razões dos acusados? Como se pode, então, condená-los?
E mais: o que dizer das ações jurídicas, econômicas e militares que perpetramos em lugares quaisquer no mundo, com base em informações e imagens como as que contamos? Isso só pode resultar em violência, pois é como tatear com uma bengala na escuridão. É preciso compreender que as imagens, informações e notícias, ou seja, as narrativas que temos do mundo, não são idênticas ao mundo. Para mim, a guerra com drones é uma metáfora disso (e também do nosso agir econômico): a pessoa imagina que está vendo alguma coisa através das imagens transmitidas pelo drone, e essa coisa se torna alvo de ataque; mas a pessoas não está vendo a realidade, e sim imagens que são absolutamente divergentes da realidade. O impacto do míssil disparado contra o alvo, entretanto, é cruelmente real. O resultado dos nossos atos é verificado, depois, no máximo por outras imagens, e essas mostram qualquer coisa, mas não a realidade do horror. A imagem de um cadáver e um morto real são coisas completamente diferentes. Essa relação, talvez aparentemente muito teórica, produz concretamente uma enorme destruição. É preciso que se entenda isso, do contrário não temos como agir de maneira responsável em um mundo globalizado.
AGORA – As Trevas Risíveis foi montado em vários países de maneiras bem diferentes. Na produção de Dušan David Parízek, uma das atrações do Theatertreffen 2015, em Berlim, todos os papéis foram desempenhados por quatro atrizes. Como se explica o grande interesse que a peça desperta?
LOTZ - Provavelmente sou a pessoa menos apropriada para explicar o porquê do grande interesse pela peça. Eu, pelo menos, não contava com isso. Na montagem do Burgtheater de Viena, a decisão de destinar todos os papéis, que são todos masculinos, a mulheres foi de todo modo muito esperta. Por um lado, porque ao assistirmos à peça salta imediatamente aos olhos uma diferença - fica claro mais uma vez que aquilo que se vê não deve ser confundido com a realidade, que a realidade não pode simplesmente ser reproduzida. Além disso, fica concretamente visível no palco algo que vai ser problematizado pelo texto: não há nenhum papel feminino, somente homens; que a narrativa da viagem pelo rio, da assim chamada civilização até a assim chamada selva, é uma narrativa branca e masculina.
AGORA - Você assiste às montagens ou pelo menos aos vídeos delas?
LOTZ - Sempre que possível. Isso porque entendo o teatro como um diálogo artístico. E o teatro vai responder ao meu texto com uma montagem. Então, se me disponho a estabelecer esse diálogo, preciso ouvir as respostas. E isso independentemente do fato de eu ter esperado aquelas respostas ou de elas me agradarem. Num diálogo não importa se alguém responde alguma coisa que agrada ao outro - pelo contrário. No caso de As Trevas Risíveis, assisti a muitas produções, talvez umas 15, mas depois foram tantas mais que ficou impraticável - tenho uma família. Agora assisto somente a uma ou outra montagem.
AGORA - As Trevas Risíveis foi escrito originalmente como uma peça radiofônica, mas o potencial cênico do texto é evidente. Que liberdade você concede aos diretores quando eles trabalham com um texto seu? Há limite?
LOTZ - Não, para mim não há limites. Compreendo o teatro como um espaço social, e gostaria que nesse espaço se agisse como na sociedade que imagino, pois é isso que arte deve manifestar. E essa sociedade deve ser o menos hierárquica possível. Tento escrever minhas peças sem condicionamentos – da mesma forma, quem vai trabalhar sobre um texto meu deve responder à sua maneira, sem condicionamentos. É dessa forma que imagino o diálogo social. E as respostas são completamente livres, não me importa em absoluto que elas me agradem ou não, pois, como falei, não é disso que se trata num diálogo. Se uma atriz decidir não falar um monólogo escrito por mim para a peça, porque ela talvez o considere absolutamente equivocado, e, ao invés disso, preferir inserir um texto próprio, isso vem muito mais ao encontro da ideia das minhas peças. Para mim, uma montagem ruim é somente aquela em que eu percebo que os participantes não se debruçaram de verdade sobre o texto. Mas se eles fizerem isso, chegando a suas próprias decisões, é totalmente correto que respondam a ele de maneira absolutamente livre. Assim é que deve ser.
AGORA - Em seu texto “Rede Zum Unmöglichen Theater” (Discurso sobre o Teatro do Impossível), o senhor afirma que: “O teatro é o lugar onde realidade e ficção se encontram, perdendo a compostura em uma colisão sagrada”. É isso que possibilita ao teatro tornar possível o que se diz ser impossível?
LOTZ - Uma peça de teatro é como um manual para a realidade. Eu tento, nas minhas peças, levar essa relação muito a sério. Isso chega ao ponto de eu exigir coisas impossíveis nas rubricas. Que seja exigido, no teatro, que mortos voltem à cena; que as leis da física sejam anuladas, etc. Nas exigências do impossível ficam expostas de modo especial as imposições e limitações (sejam elas físicas ou sociais); formulando-as e exigindo-as repetidamente, surge um desejo que vai tornar possível o futuro - apenas assim se cria um espaço de possibilidade. E o teatro deve proceder com os textos de modo que esse desejo possa ser visto no palco, que ali, de alguma maneira, torne-se visível a insuficiência da realidade, que a falta seja palpável, inclusive na própria encenação. Estas coisas são tratadas em minhas outras peças de maneira mais intensa; em As Trevas Risíveis, elas são explicitadas apenas parcialmente, de maneira indireta.
AGORA - As Trevas Risíveis é claramente um exemplo de teatro político. Como o teatro alemão tem lidado com os conflitos atuais? Questões de discriminação de gênero e de raças e sobre o fortalecimento de movimentos de direita são colocados em cena?
LOTZ - Sim, isso ocorre muito na Alemanha. E concordo que o social deva ser problematizado no teatro, porque o teatro é ele mesmo um espaço social. Mas muitas vezes não estou de acordo com a maneira como isso acontece, porque geralmente é só uma tematização do político, o que não tem grande valor no teatro, porque é formalmente afirmativa em relação aos discursos e narrativas já existentes na mídia. Não se é político só porque se fala sobre coisas que claramente têm sua origem na esfera do político. Eu quase me senti ofendido quando a imprensa, repetidas vezes, chamou a atenção, no caso de As Trevas Risíveis, para o fato de que essa sim seria uma peça realmente política. Pensei: “Mas eu escrevo peças políticas o tempo todo! Mesmo que a política nem sempre aparece como tema!”. O dramático não trata daquilo sobre o que é falado, mas sobretudo de como é falado. Não trata de temas, mas de relações que se expressam na fala, que são também sempre relações sociais, e essas devem ser expostas de maneira política e, portanto, também de forma que o próprio espectador caia nas contradições ao assistir à peça. Nesse sentido, algumas peças podem ser muito políticas mesmo ao tratarem, em termos temáticos, de coisas absolutamente não-políticas, ou serem inócuas mesmo falando o tempo todo sobre coisas supostamente políticas. E até começo a acreditar que talvez seja contraprodutivo ser tematicamente político - tenho a sensação de que As Trevas Risíveis se aproxima mais facilmente do que minhas outras peças dos discursos temáticos das mídias e, assim, mais sujeita a ser reduzida a seu teor declarativo e informacional. Mas o seu discurso pretende ser estruturalmente diferente, é um discurso artístico, isso é que é o importante. Ainda assim, continuo acreditando que a peça opõe resistência suficiente a essa incorporação, que ela contém suficiente potencial reivindicatório. Assim espero.
Tradução: Luciana Waquil
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