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A receita de Abobrinhas Recheadas é tão simples como original. Em um espetáculo, misture uma coleção de sucessos populares, sejam eles sertanejos, rock, funk, românticos ou do regionalismo gaúcho. Crie coreografias a partir das letras dessas músicas, tomando como ponto de partida os gestos literais que os versos sugerem, e mexa bem o corpo. Adicione técnica rigorosa de dança e talento cômico dos bailarinos – deixe fermentar. Leve ao palco na forma de um repertório que na maior parte do tempo arranca um sorriso pela inventividade dos movimentos, mas que sutilmente lida com questões políticas e existenciais intensas.
O tempero parece forte para quem defende que a dança deve manter distância do gênero comédia e evitar o apelo imediato. Mas Abobrinhas Recheadas pode ser tudo, menos uma montagem simples ou simplória. Pelo contrário, é uma proposta radical de participação ativa do espectador, instado permanentemente a relacionar movimento e letra, descobrindo relações e construindo significados.
Exemplificar algumas das músicas coreografadas ajuda a entender. Os primeiros quatro versos de Chuva de Lágrimas, sucesso na voz de Fafá de Belém, sugerem como pode ser fácil fazer mímicas a partir da letra – “Há uma nuvem de lágrimas sobre os meus olhos / Dizendo pra mim que você foi embora / E que não demora meu pranto rolar / Eu tenho feito de tudo pra me convencer”. Mas entra em palco a transgressão e, no “Ah, Ah, Ah” sertanejo do estribilho, o bailarino vai levantando a letra A que faz com os dedos à medida que a nota fica mais aguda. Eu Nasci Há Dez Mil Anos Atrás, hit de Raul Seixas e Paulo Coelho, chega a ser covardia, pelo caráter narrativo e pleno de imagens que os versos propõem. Cama e Mesa, de Roberto e Erasmo Carlos, é outro exemplo de poética fácil de traduzir em gestos.
Esse é justamente o maior perigo que Abobrinhas Recheadas correu: se esgotar na tradução física das letras, bastando-se pelo inevitável efeito cômico desse exercício. Os diretores Diego Mac e Gui Malgarizi, cientes disso, parecem reservar a maioria das primeiras músicas do repertório para exibições solo, como que ensinando o público as regras do jogo, progressivamente tornando as coreografias mais complexas. Para contornar a redundância causada pela repetição das estrofes, as coreografias ou se alteram (e isso já provoca o espectador a descobrir soluções diferentes que os bailarinos usaram para as mesmas palavras ou ações) ou modificam a energia das coreografias ao longo da canção (os três bailarinos envolvidos em Amigo Punk, por exemplo, iniciam a coreografia sobriamente, mas a completam em estado de absoluta demência). Há surpresas deliciosas: o adjetivo “belo” pode ser representado por um rebolado do cantor Belo, ou os Beatles podem ser representados pelo elenco assumindo por instantes a formação da capa do álbum Abbey Road.
É difícil fugir de algumas barrigas ao longo do espetáculo, como em Amor e Sexo, de Rita Lee e Arnaldo Jabor, com seu rol quase interminável de substantivos, ou em Vira Vira, em que a narrativa de uma suruba recebe o tratamento explícito e gráfico característico dos Mamonas Assassinas. Mas parece que o tom leve, levemente sacana e francamente cômico de Abobrinhas Recheadas está lá unicamente visando desarmar o público para as coreografias emocionalmente contundentes de Construção e de A Banda, ambas de Chico Buarque. Construção é valorizada pela ótima luz de Malgarizi e Sandra Santos, que ilumina e quase materializa o sombrio caos social brasileiro. Todos os quatro bailarinos estão em cena, cada um interpretando os versos à sua maneira, emprestando seu estilo à narrativa de Chico, provocando o público a optar por uma ou outra leitura.
A Banda é o requinte. Desta vez, Daniela Aquino, Diego Mac (na foto abaixo), Juliana Rutkowski e Nilton Gaffree Jr se concentram num grupo e movem-se lentamente pelo palco, repartindo entre eles os gestos e as intenções de cada verso, numa demonstração de diversidade e integração. A estratégia dramática e a intenção política são evidentes quando a ingenuidade saudosista de A Banda sucede a amargura plástica de Construção, como espelhando duas faces do Brasil. Há ainda Todo o Sentimento (novamente Chico, parceria com Cristóvão Bastos), solo de Daniela que não deixa pedra sobre pedra emocional.
O final vem com uma performance matadora e épica de Faroeste Caboclo, da Legião Urbana, piada e tragédia pronta para um espetáculo como Abobrinhas. A cereja do bolo é que os bailarinos lembram o dublador Pablo, aquele do quadro Qual É a Música, do Programa Silvio Santos, para representarem o herói desvalido da letra de Renato Russo... Sem esquecer o clássico A Velha a Fiar, quando o elenco transfere a direção do espetáculo para o público, a quem cabe definir quais personagens cada bailarino vai assumir na famosa cantiga popular.
No final, ao som de Emoções, os bailarinos trocam entre si detalhes tão pequenos das coreografias de Abobrinhas, cúmplices e felizes de terem compartilhado suas brincadeiras com os espectadores. Uma brincadeira séria da Macarenando Dance Concept, que aponta novos caminhos para a dança ampliar seu público.
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ABOBRINHAS RECHEADAS
Direção, coreografia e trilha-sonora: Diego Mac e Gui Malgarizi
Bailarinos: Daniela Aquino, Diego Mac, Joana Amaral, Juliana Rutkowski e Nilton Gaffree Jr
Produção: Sandra Santos
Assistência de produção: Giulia Baptista e Arthur Bonfanti
Preparação de elenco: Aline Karpinski
Iluminação: Gui Malgarizi e Sandra Santos
Operação de som: Dani Dutra
Realização: Macarenando Dance Concept
Duração: 60 minutos
Fotos: Gui Malgarizi
Recomendação etária: 10 anos